Amanhã, segunda-feira 20 de novembro, é comemorado o Dia da Consciência Negra. Em Rio Claro, a data é feriado e vem acompanhada de muita reflexão para quatro entrevistados que deram depoimentos carregados de muita história, conquistas e anseios ao Jornal Cidade.
O HOJE
“Para nós, povo negro, é um dia de reflexão e também de celebração de um trabalho que desenvolvemos ao longo do ano. Buscamos melhorias para o nosso povo. Este ano por exemplo estamos trazendo o SOS Racismo que será um canal para que as pessoas denunciem casos de racismo, que não são poucos, existentes na cidade de Rio Claro. Já temos um local que será na Philarmônica e agora acreditamos que até o final deste mês ou até a primeira quinzena de dezembro já teremos um 0800 ativo. Muitas pessoas ainda não entendem por que buscamos os nossos direitos, mas eu vou explicar. Somos um povo invisibilizado que vive às margens da sociedade e, quando buscamos algo, a nossa atitude é chamada de ‘mimimi’ ou exagero”, afirma.
O AMANHÃ
“Estamos pleiteando também o Procon Racial e o Selo Cidade Anti-Racista. Sobre o primeiro é importante frisar que, nas relações de consumo, nenhuma pessoa pode sofrer preconceito em razão da cor da sua pele, raça ou etnia. O atendimento deve ocorrer sem qualquer tipo de ação violenta, vexatória, constrangedora ou intimidatória. Daí você me pergunta se isso ocorre. Sim e com frequência. Já aconteceu comigo no passado e recentemente. Uma vez eu fui alugar uma casa e o proprietário disse que não alugava para pessoas pretas. Em uma passagem mais recente fui comprar um carro e extremamente mal atendida, dando a entender que eu não tinha condições. Fui embora e efetivei a compra em outro local”, revela.
A LUTA
“Não devemos abaixar a cabeça. Eu digo que sou brasileira e não desisto nunca. Tenho minha casa, meu carro, tudo conquistado com muito trabalho. Ser mulher não é fácil. Mulher preta e nordestina mais difícil ainda. Eu venci muita coisa e vou vencer ainda”, finaliza.
O HOJE
“O 20 de novembro não é uma festa, é um tempo para se pensar. Olhar para trás, ver onde progredimos e onde queremos chegar. Eu me lembro de quando a data ainda não era feriado aqui no município e a comunidade negra decidiu ir em peso na Santa Casa para doar sangue porque só assim não precisávamos trabalhar. Aquilo deu muita visibilidade a nossa causa e chamou a atenção da imprensa, prefeitura e foi através deste ato que em 2007 a data já estava instituída no calendário oficial do município”, relembra.
O AMANHÃ
“São muitos os projetos. A Lurdinha citou o SOS, o Procon, o Selo, mas nosso leque vai além disso. Trabalhamos também com a beleza e autoestima da menina e do menino negro. E queremos ir muito além disso. O mercado de trabalho é um ponto muito importante. Muitos dos nossos não chegam onde querem chegar porque saem para trabalhar e colocar comida dentro de casa. Não é questão de marginalidade, é de falta de oportunidade. Não podemos mais pensar que os nossos estarão dentro de uma firma mas na faxina, na cozinha. A educação tem que vir para que a futura geração seja destaque”, pontua.
A LUTA
“Eu já passei por situações de ser perseguida dentro de supermercado, de ser mal atendida em lojas e até mesmo já cheguei em uma entrevista de emprego e a pessoa me olhou de cima em baixo e sem nem querer saber do meu currículo mentir que a vaga já tinha sido preenchida. Em outra vez ouvi que eu não estava dentro do padrão. Têm horas que você se magoa muito, mas o segredo é não desistir. Por isso eu digo para a nova geração: conheçam as suas origens e ancestralidades. Saiba de onde você veio. Hoje temos as leis que nos ajudam muito, mas é preciso mais e é em busca desse mais que, aos 62 anos, eu sigo indo”, afirma.
O HOJE
“A data me traz uma reflexão muito profunda. Uma questão identitária e de pertencimento. Na minha certidão de nascimento está que eu sou pardo, mas eu fui me reconhecer preto aqui em Rio Claro. É uma questão de ter um pertencimento na comunidade. Eu gosto muito de ser uma pessoa preta em Rio Claro. O município é muito bom para se viver a negritude. O meu interesse começou pelo samba na Grasifs e pelo movimento Hip-Hop. Eu nasci em Pirassununga e me mudei para cá quando ingressei na Unesp no curso de Geografia. A princípio era ficar só quatro anos mas já são 18. Atualmente estou concluindo meu doutorado na universidade”, declara.
O AMANHÃ
“Eu vejo um futuro brilhante para o nosso país. Eu sou absolutamente otimista e eu acredito que a condição do negro vai melhorar. O nosso lugar não é um lugar de dor, mas de amor e conquistas”, afirma.
A LUTA
“A arte existe porque a vida não basta. Essa frase é do escritor e poeta Ferreira Gullar e eu acho extremamente apropriada para aquilo que eu vivo. Eu trago as minhas questões para a minha arte. O teatro me ajudou muito a contar as minhas histórias. Há dois, três anos eu trabalho com o teatro experimental do negro que é inspirado no Abdias do Nascimento. A minha arte é sem dúvida uma bandeira de luta”, conclui.
O HOJE
“É uma data importante para reconhecermos alguns avanços, mesmo que poucos. Temos uma lei que já completou 20 anos e que ainda não é executada de fato em todas as escolas. Essa lei obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Um dado recente aponta que 70% das escolas não têm isso incorporado à grade. Se mais de 50% da população brasileira se assume negra e parda, então está tendo uma discrepância muito grande que precisa ser revista urgentemente”, relata.
O AMANHÃ
“A questão racial não é uma questão só do negro. O negro pensa mas a sociedade como um todo precisa pensar sobre isso para que a gente tenha de fato mudanças efetivas”, declara.
A LUTA
A fala de Yaisa será divulgada através de um de um poema que ela escreveu:
O CORPO NEGRO
Peço licença para chegar
Peço licença para falar
Licença aos meus mais velhos
Aos que estão e aos virão
Abro esse caminho ancestral
chamado em kimbundo de NJILA
e em terras brasileiras
tornou-se a gira,
Para falar, refletir
sobre o corpo negro
Para além da pele, do nariz largo
da boca e do bumbum grande
do cabelo crespo
Quero falar de um corpo cheio de memórias
ancorados de histórias
que trouxeram sua única bagagem
Este corpo-território
Quero falar das lutas diárias
dos atravessamentos, das dores
e sofrimentos
para resolvê-los
como diz Audre Lorde
Se não resolvo minhas dores, morrerei delas.
Então, quero falar também
de amores, de vitórias
de histórias de reis e rainhas africanos
do Reino do Congo, do Ndongo
De Nzinga, de Cleópatra
De Kemet, o que os colonizadores chamam de Egito
Ah, quero falar de tambores
da marimba, da Nsanda
árvore que dá abrigo aos cumbas do Congo decidirem sobre suas comunidades
Eu quero falar de deuses que dançam
Que comem e partilham com seus filhos
quero falar de comunidades
de quilombos, de festa e celebração
de berimbau, de ginga
de vida
E olha quanta coisa bonita eu disse até agora
Tudo isso está aqui,
atravessou um aceano
forçadamente nos tumbeiros
passando pela kalunga
e chegando em terras pindorâmicas
Eu poderia falar de muito mais coisas
de outros reis e rainhas
das adrinkas
da língua aqui dita
o pretoguês, como chamaria Lélia Gonzales
Pelas incontáveis contribuições
dadas a esta terra
pelas riquezas de África
O mundo nos deve respeito
Respeite minha cor, meu tambor, meus deuses
meus despachos
minhas encruzilhadas
Respeite meus lugares, meus caminhos
trilhados por meus ancestrais
para que eu chegasse aqui hoje
Portanto, nós estaremos
nós estamos conquistando
o hoje e o amanhã
É melhor se acostumar
Porque nós vamos chegar
aqui, ali e acolá
E em muito mais
Estaremos lá
Porque a gira foi aberta
E o corpo negro vai passar.