Villamarim é mineiro, Moura é pernambucano. Ambos vêm de famílias católicas, estudaram em colégios maristas. Possuem as mesmas referências e influências, as mesmas vivências. “A gente namorava no recreio, na igreja. Havia uma entrada lateral, a nave ficava deserta, escura e a gente ia para o amasso naquele ambiente de excitação e culpa. Então, quando eu escrevo o diálogo para Débora Bloch, como uma mãe que corre como uma oferenda a Deus, rezando pelo restabelecimento da filha, o Villa entende”, conta Moura. Para ele, Fortes nasceu como um desejo de mostrar que a modernidade do Brasil permanece presa ao arcaico, às velhas estruturas. Como todo capítulo inicial, o da supersérie é fragmentado, porque tem muitos personagens para apresentar. Mas alguns momentos/fragmentos ficam com o espectador.
Uma noite no sertão. Vai se apresentar a Shakira sertaneja. A movimentação é intensa. As motos, os cavalos, os carros. É o emblema desse mundo que os Fortes retrata. “Para mim, é decisivo”, diz Villamarim. “É a cena conceitual do começo dos Fortes. Esse mundo em convulsão, transformação, está todo ali, naquela poeira de motos e animais.” E Moura – “Eu estava no set, naquela noite. Vi nascer o plano que você está falando, e foi emocionante. Estava dentro do carro, vendo aquela movimentação toda. Me deu uma coisa, uma emoção. Cheguei a chorar.” Tudo converge, no primeiro capítulo, para o confronto entre os personagens de Marco Pigossi e Alexandre Nero. O garoto arretado peita o poderoso das terras, que joga sobre ele seus capangas. Pigossi apanha, mas reage. Apanha mais. A fala de Nero – “Isso é para você aprender quem manda e é mandado.”
De repente, todas as histórias fragmentadas, cruzadas vão se organizar e fazer sentido. Pigossi vai desaparecer e a irmã, Maria, vai iniciar uma busca mítica por ele. Serão 53 capítulos, quatro vezes por semana – de segunda a sexta, menos quarta, que é dia de futebol. Moura avalia a diferença de escrever para cinema e TV. “Num filme, quando chegamos a 50 minutos, os conflitos já se encaminham para uma solução. Numa série, ou macrossérie, aos 50 os conflitos que vão delimitar a linha geral da história só começam a se esboçar.” Moura escreve, Villamarim filma. Seja por afinidade, ou o que, um não interfere na atividade do outro. Discutem, trocam ideias, mas Moura não sugere como Villa deve construir a cena e o diretor também não fica interferindo no diálogo.
De cara, a dramaturgia subverte o desenho dos personagens. Nero, que se chama Gouveia, como o mítico empreendedor do sertão, é pai dedicado, mas tem amante e faz rebentar de pancada aquele que ousou desafiar sua autoridade. Será o vilão da história? No final do capítulo, vestido de branco, surge o magistrado – Ramiro/Fábio Assunção, praticando tiro ao alvo com rifle de mira telescópica. Assim fica difícil errar. “Todo dia é dia de caça, e de caçador”, diz o poderoso Ramiro. O branco cria um arquétipo – será, em oposição a Nero, o personagem positivo da trama? Ramiro, o juiz, como inquisidor do sertão, é o senhor de tudo. É inimigo mortal de Gouveia. Refreie sua expectativa. Mocinho, bandido. As coisas não são tão simples. Vão se complicar ainda mais.
Maria, em busca do irmão, reviverá o arquétipo de Maria Bonita – Alice Wegmann é quem faz o papel – e Patrícia Pillar, como a mãe, vai se aproximar do juiz. Para complicar ainda mais, o juiz tem um filho, Ramirinho, interpretado por Jesuíta Barbosa, e que não é outro senão a Shakira do sertão. O travesti evoca Visconti – Helmut Berger emulando Marlene Dietrich em “Os Deuses Malditos”. E, na abertura, o plano subjetivo da bicicleta, quando Maria cai, leva a outro, belíssimo – que descortina a paisagem, o sertão. Ecos do deserto de David Lean, Lawrence da Arábia. “Parece presunçoso, não?”, pergunta o diretor. Na verdade, são coisas tão entranhadas no imaginário dele, e de Moura, que terminam vindo, ao natural, a partir das sugestões do roteiro. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo