Artistas de agronejo misturam funk e pop para criar o caipira ostentação

Folhapress

“Bota o chapéu na cabeça, botou bota, bota em mim. Quicando no fazendeiro, galopando gostosinho”, canta Ana Castela, de 18 anos, no refrão de “Juliet e Chapelão”, antes dos versos de Luan Pereira, também de 18 anos -“ela se amarra e monta no peão sem sela”.

A faixa, com produção do DJ Chris no Beat, traz batidas eletrônicas como uma música pop, mas fala sobre o estilo de vida caipira, com versos construídos como uma letra de funk.

A mistura marca um novo estilo dentro da música sertaneja, chamado de sertanejo agro ou agronejo, que há uns seis meses vem crescendo no streaming e nas redes sociais. A ideia é absorver uma estética mais urbana e ao mesmo tempo tornar os temas ainda mais relacionados à cultura da roça -ou, como cantam Gino & Geno, da “galera do chapéu”. Nos versos de “Pipoco”, “nós junta juliet [óculos esportivos espelhados que são ícones do funk] e chapelão”.

Para Chris no Beat, esse movimento começou com “Os Menino da Pecuária”, música de Leo & Raphael, de abril de 2021, que traz uma linguagem de ostentação, própria do funk, para exaltar a agropecuária -“calculo o valor que tá o gado, quantas Ferrari tem aqui nesse pasto”. A faixa se desenrola com uma batida de EDM -electronic dance music- e sons de berrante.

“Essa música quebrou muitas barreiras”, diz o DJ. “Na sequência, a gente veio com essa modernidade. O antigo agro é visto de outra forma. Esse novo agro, que mistura música eletrônica, funk, letras mais ousadas, chapéu -esse é o nosso agro. E vem dando certo.”

Desde “Os Menino da Pecuária”, o sertanejo agro vem emplacando hits com diferentes artistas, mas a bolha parece ter sido furada mesmo com “Pipoco”, faixa de Ana Castela e Chris no Beat com participação da MC Melody. A música está há quase um mês no topo da lista de músicas mais ouvidas do Brasil no Spotify.

Nascida em Sete Quedas, em Mato Grosso do Sul, Castela cresceu fã de Marília Mendonça, mas tem uma pegada diferente do chamado “feminejo”. “Sou muito eclética”, ela diz. “Não sou sertanejo, não canto sertanejo. Quem canta sertanejo é Maiara e Maraisa, Marília Mendonça. Eu canto agro -agro com pop, agro com funk. Meu estilo na roupa é sertanejo, mas o que sai da minha voz é diferente. Sou do agro e gosto de Luísa Sonza, de Anitta. Por que não juntar?”

Conhecida como a Boiadeira, nome de seu primeiro single, Castela até tem músicas sobre relacionamentos, mas a sofrência fica de lado em meio a letras sobre a cultura e a moda de quem vive no interior. “O cabelo Chanel deu lugar ao chapéu, tá cheia de terra a unha de gel”, ela canta em “Boiadeira”.

“Ela que era cheia de ‘não me toque’ agora tá tocando o gado.”

“Eu tinha cabelo Chanel, cortadinho, que nem fala na letra”, diz a cantora. “Quando a música chegou, eu estava na fazenda ajudando meu pai. Não morei na fazenda, mas ela sempre esteve no meu sangue. Não é um personagem, é meu [estilo] total.”

Castela diz que “está aqui para enaltecer o agro” -ou seja, “usar uma bota, chapéu ou cinto”, falar de quem “mexe com gado, anda a cavalo, gosta do estilo”. Mas seu universo é mais amplo. Em “Neon”, ela canta versos como “não é porque gosto de bota que não posso andar de salto” e “mulher bruta pode rebolar e ser bagaceira”.

“O povo é muito ‘ah, ela é de fazenda, mas tá usando short e sandália'”, diz. “Não é assim. Posso ser da fazenda, usar minha bota no dia a dia, mas quero usar um salto de noite, um tênis, uma roupa diferente. Não é porque sou bruta, menina da pecuária, que não posso sair por aí e rebolar minha bunda em baile funk, entendeu?”

Esse choque da cultura rural com a urbana é retratado em “Nóis É da Roça Bebê”, em que Castela canta sobre uma mulher que é “tipo peão” e encontra “um playboy de carro rebaixado, estilo vida louca, querendo passar mel na minha boca”. “O playboyzinho que a gente fala é um menininho que não entende nada sobre cavalo, boi, e quer conquistar a gente, e aí finge que sabe. Mas isso nunca aconteceu comigo porque eu gosto dos playboyzinhos mesmo.”

Segundo Luan Pereira, que também segue o estilo agronejo, essa imagem do playboy -mais uma pessoa da cidade grande do que um mauricinho clássico- é “uma figura que se criou”. “A gente não desmerece. Rola umas trends na internet dizendo ‘o playboy não faz o que o caubói faz’. Aí a gente pega e faz música com isso. E os próprios playboys cantam.”

Com um vozeirão grave e enrouquecido, Pereira, que nasceu em Suzano, na região metropolitana de São Paulo, mas cresceu em Rosana, no interior do estado, ascendeu à fama com vídeos nas redes sociais, assim como Castela -mas, diferente dela, não só cantando. “Tem vídeo de cantada, de frase, de reação e eu cantando também. É a minha essência. Gosto de ser engraçado, de ficar fazendo graça perto dos outros”, diz.

O sucesso online dos jovens Pereira e Castela reflete uma entrada maior do sertanejo nas redes sociais. E ele vem acompanhado das mudanças estéticas na música, que são também calcadas no sucesso dos remixes em funk de músicas sertanejas -segmento no qual se destaca o DJ Lucas Beat.

Para Pereira, foi Chris no Beat quem estruturou a sonoridade diferente. “A ideia dele era um projeto para sair da casinha, uma batida de funk com papo caipira. E foi ‘Pira nos Caipira’. A gente fez por fazer e soltamos. Resumindo, bombou no TikTok. Aí começou a mistura com o funk que fez tomar proporção. A galera gosta do diferente, por isso que impactou.”

Esse sucesso também marca mudanças na maneira de se compor. “É um processo americanizado. Você faz a batida e chama o pessoal para escrever”, diz Chris no Beat. “É muito interessante porque acho que [‘Pipoco’] foi a primeira música, para nós, que foi feita dessa forma. Geralmente, pego o violão e vou compor, para depois adaptar em outra coisa.”

“Pipoco” tem uma introdução de berrante e um arranjo de banjo, mas se desenvolve como uma música descaradamente pop. “É um funk, uma música eletrônica”, diz Chris, raro DJ de música sertaneja. “E no papo, a gente fala o que a gente usa aqui. Tipo, ‘debaixo do chapéu você não vai mais sair’. Para nós é uma novidade, igual está sendo para o Brasil inteiro.”

Quem também segue essa linha são Us Agroboy, dupla que se conheceu em Fronteira, no interior de Minas Gerais, e criou o que chamam de “hip-roça”. Tanto Jota Lennon, que foi locutor de rodeio com quatro anos de idade, quanto Gabriel Vittor, tinham uma carreira usual no sertanejo antes de montar o grupo.

“Minha vivência é todo fim de semana um rodeio diferente, e o Gabriel vem da viola caipira, da real essência sertaneja, de família da roça”, diz Lennon. “O Brasil é feito de misturas. Dupla sertaneja com um cara cantando a primeira e o outro a segunda voz é o que mais rola. A a gente quer furar essa bolha. ‘Hip-roça’ é a voz do interior, uma galera que talvez não foi ouvida com uma música com batida mais agressiva, falando que ‘aqui é da roça’.”

A dupla é responsável pelo “Fazendinha Sessions”, espécie de “Poesia Acústica” -série de vídeos musicais que reúnem rappers e funkeiros em formato acústico, sucesso no Brasil- do agronejo. “A ideia foi reunir essa nova geração”, diz Lennon. “Não sei se vai virar um subgênero do sertanejo, mas queremos colocar gente de outros gêneros também -do rap, do funk, fazer a conexão.”

Com estilo mais escrachado, Us Agroboy usam batidas eletrônicas e Auto-Tune, elementos usados no trap, no rap e no funk. Entre suas músicas estão “Senta na Fivela” -em que fazem o “passinho do agroboy”- e “O Agro Nunca Para” -em que dizem “pego a minha caminhonete e o dinheiro da soja e vai tudo pros graves”.

​Assim como outros artistas do agronejo, eles também se apropriam do discurso de ostentação -mas de maneiras diferentes. Se o funk e o rap ostentam correntes de ouro, roupas e carros de marca, o sertanejo agro exalta bota, chapéu, copo térmico Stanley e caminhonete Hilux, entre outras coisas.

“O estilo de ostentação já vem do hip-hop”, diz Vittor. “Se a galera do hip-hop costuma ostentar tal coisa, a gente que é da roça também tem o direito.” Lennon diz que essa ostentação está mais para algo inalcançável. “Talvez seja o sonho de um produtor rural, assim como a gente também tem nosso sonho de ter caminhonetes, fazendas, colheitadeiras.”

Esse tipo de composição recentemente levou a críticas de Jads, dupla com Jadson, expoente de um sertanejo mais rústico e ligado ao campo. Ao podcast do jornalista André Piunti, Jads disse que o gênero “não é o agro, bruto”. “Eles estão misturando com umas batidas” afirmou, e também que “Tião Carreiro está se revirando no túmulo”. “A gente fala de um romantismo, é diferente. Não tem música dizendo que comprei uma Hilux”, acrescentou. “É um agro ostentação, não é aquele que fala da roça.”

“Sou fã das músicas dos caras, mas sou mais velho, tenho 31 anos”, diz Chris no Beat. “Meus fãs têm 20, 18, 13 anos. Acho que eles não escutam Jads e Jadson.” Para Gabriel Vittor, o comentário foi “bastante hipócrita”. “O cara é da cultura da viola caipira, mas sempre gravou com nomes do sertanejo universitário. Pega ‘Eucaliptos’, do Jads e Jadson. É ostentação pura -de eucalipto, grana, dinheiro. Então acho que não é bem por aí.”

Mas independentemente da rusga, há nesse novo estilo -também seguido pela dupla Adson & Alana, autointitulados “os embaixadores do agro”, entre outros- uma defesa generalizada e ferrenha da agropecuária. Antes mesmo do sucesso de “Os Menino da Pecuária”, Leo & Raphael já haviam lançado, em 2019, a música “Agro é Top” -cujo clipe é uma espécie propaganda do agronegócio, destacando a produção de soja e carne bovina no Brasil.

Trata-se de uma pauta atrelada à chamada bancada do boi e que apoia o presidente Jair Bolsonaro, do Partido Liberal. Mas os artistas ouvidos pela reportagem negam uma ligação direta entre a política e a cultura que eles exaltam.

“Fiz 18 anos, não me alinho com política”, diz Luan Pereira. “Tenho meus pontos, meus lados, mas não exponho. A galera tira foto e abraça gente da política, mas não me misturo. Meu público tem dois lados.”
Gabriel Vittor diz que “o intuito é defender a galera da roça”. “É o Bolsonaro que está apoiando agora? Beleza. Mas se vier outro presidente que vai apoiar, que seja bom para quem é produtor rural, beleza. Nosso esquema é cantar e representar essa galera.”

Para Chris no Beat, esse alinhamento entre o agronegócio e a direita é “o que a gente vê na mídia”. “Não vejo assim na minha vivência. Sou DJ, não convivo com esse pessoal”, ele diz.

“Nosso estilo vem crescendo porque estamos batalhando. Não temos apoio. Meus amigos aqui, na maioria, não têm um lado. E a gente foi muito abandonado na pandemia, né? Então é difícil falar sobre isso. É normal o pessoal achar que porque a gente usa chapéu a gente vota no Bolsonaro, mas nem sempre é assim. É muito diferente a nossa realidade aqui.”

Hoje, tanto Castela quanto Luan Pereira, Chris no Beat e Us Agroboy moram em Londrina, onde estão as gravadoras que apostam no agronejo, como a Agroplay. E celebram que a bota e o chapéu estão na moda. “Você vai na rua, tem gente de chapéu -no mercado, na farmácia, numa festa eletrônica”, diz Luan Pereira. “Você vê que as pessoas não têm mais vergonha de sair na rua desse jeito. Sou muito grato por isso.”

Redação JC: