CLÁUDIA COLLUCCI – SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com a nova alta de casos e mortes por Covid-19, a queda da oferta de leitos, a demanda represada da assistência de outras doenças e o orçamento mais enxuto, médicos e gestores da saúde preveem em 2021 um cenário ainda mais difícil do que no início da pandemia.
Do total de 16.500 leitos hospitalares habilitados pelo Ministério da Saúde para Covid, apenas 4.580 estavam em operação, segundo a última atualização do Conass (Conselho Nacional de Secretários da Saúde) no dia 11 de dezembro.
Isso ocorre em um momento em que a média de mortes por Covid no país sofre um aumento de 27% em relação a 15 dias atrás, com o número de óbitos diários ultrapassando a casa dos 900.
O Ministério da Saúde diz que tem sido ágil na habilitação dos leitos, que os gestores recebem os recursos antes mesmo da ocupação deles. Para isso, precisam indicar a curva epidemiológica do coronavírus na região, a estrutura para manutenção e funcionamento da unidade intensiva, e corpo clínico para a atuação nas UTI.
O SUS perdeu 3.836 leitos de UTI de julho a outubro, de acordo com dados da Amib (Associação Medicina Intensiva Brasileira). O número passou 26.780 para 22.844.
Na rede privada, também houve perda de 4.961 leitos no mesmo período, passando de 27.967 para 23.004.
Ao mesmo tempo, há consenso no setor de que não é possível mais priorizar apenas os casos de Covid. A desassistência das outras doenças já mostra o seu impacto: aumento nas UTIs da taxa de mortalidade por outras doenças não Covid.
O índice das UTIs privadas estava estável nos anos anteriores e deu um salto em 2020 – de uma média de 0,84 para 1,22. Os dados das públicas ainda estão sendo concluídos.
Essa taxa de mortalidade padronizada é ajustada de acordo com a gravidade e o perfil do paciente. É calculada a partir da taxa de mortalidade esperada, com base nos anos anteriores, e a realmente observada na UTI.
Por exemplo: se é esperada uma taxa de mortes de 20% e ela ocorre de fato nesse patamar, a taxa padronizada é de 1 (dentro do previsto). Acima de 1, está ruim; abaixo de 1, o resultado é melhor que o esperado.
“A taxa de mortalidade vinha caindo nas UTIs privadas e na públicas. Nossa força-tarefa conseguiu evitar um colapso da Covid, mas não assistiu de forma adequada os outros pacientes. Em 2021, a gente não pode deixar isso acontecer”, diz a médica intensivista Suzana Lobo, presidente da Amib.
Segundo ela, os gestores de saúde têm que estar voltados agora para as necessidades reais de leitos de pacientes Covid e não Covid. “Vamos ter meses aí pela frente. Se essa onda da Covid for mais forte do que a outra e se vacina não vier logo, a impressão que eu tenho é que não vai ter leito, não vai ter hospital.”
Painel do Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde) mostra que neste ano, até o dia 11 de dezembro, o país já teve um excesso de mortalidade de 185.847 óbitos. Só as mortes por Covid ultrapassaram 182 mil.
Esse indicador é obtido a partir das mortes esperados em 2020, com base no SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), do Ministério da Saúde, entre 2015 e 2019, e dos óbitos observados em 2020 pelo Portal da Transparência do Registro Civil.
Para Jurandir Frutuoso, secretário-executivo do Conass, além da Covid, o excesso de mortalidade pode estar relacionado à sobrecarga nos serviços de saúde, à interrupção de tratamento de doenças crônicas ou pela resistência de pacientes em buscar assistência à saúde, pelo medo de se infectar.
O médico intensivista Ederlon Rezende, diretor da UTI do Hospital do Servidor Público Estadual, diz que entre março e novembro deste ano houve uma queda de 50% no número de cirurgias que demandam UTI (de 2.000 para 1.000) em relação ao mesmo período de 2019.
Ao mesmo tempo, foi constatado um aumento de 40% na taxa de mortalidade nesse mesmo intervalo. “Se eu derrubo as cirurgias para só atender Covid, depois esses pacientes chegam mais graves e correm mais risco de morte. É uma situação encarada hoje no Brasil afora.”
Um levantamento do Instituto Oncoguia mostra, por exemplo, uma redução de 45,72% no número de biópsias feitas no SUS de março a setembro deste ano em comparação a 2019 –de 500 mil para 300 mil.
Outros exames usados no diagnóstico também apresentaram quedas. O exame papanicolau, que rastreia o câncer de colo de útero, caiu 61,58%; a colonoscopia, para câncer de reto, 45,48%.
Segundo Luciana Holtz, presidente da Oncoguia, também houve redução na média de pacientes do SUS que iniciaram tratamento para o câncer: 37,3% a menos nos casos de tumor de próstata, 33,4% para melanomas, 29,3% para câncer de mama e 28% para câncer de pulmão.
“É muito angustiante. Na primeira onda da Covid, todos foram pegos de surpresa, houve uma compreensão para a necessidade dos adiamentos. Mas agora é preciso criar diretrizes para minimizar a catástrofe já anunciada. A pandemia vai impactar muito na mortalidade do câncer.”
No instituto, já começam a chegar relatos de pacientes que já tiveram suas cirurgias oncológicas canceladas devido a essa nova alta de casos de Covid.
Gisele Salomão, 34, teve diagnóstico de câncer de mama em outubro, foi indicada uma quadrantectomia (retirada de um quadrante da mama), mas na consulta médica de 3 dezembro último foi informada que não há previsão de data para a cirurgia em razão da pandemia.
As internações por câncer também caíram 24,72% no SUS. “Os dados estão ai e são um importante alerta de que não podemos mais esperar para que os exames e diagnósticos sejam agilizados e priorizados e que mesmo diante de uma segunda onda, os tratamentos não sejam mais cancelados”, diz Luciana.
Jurandir Frutuoso, do Conass, afirma que toda essa situação de represamento das doenças não Covid preocupa muito e que os gestores estão tentando sensibilizar o Ministério da Saúde para o que chamam de terceira onda de pressão no sistema de saúde, que são esses casos doenças crônicas agravados.
Uma das demandas que o Conass em conjunto com o Conasems (conselho dos secretários municipais de saúde) negocia com o Ministério da Saúde é a incorporação definitiva ao SUS de ao menos 5.000 leitos de UTI abertos durante a pandemia.
Em documento divulgado nesta semana, a Amib também apela para que o Ministério da Saúde não desmobilize os leitos de UTI temporários.
“A pandemia revelou de forma inequívoca que para que os pacientes graves tenham desfechos favoráveis é preciso que o leito de UTI esteja completo, ou seja, com equipamentos [ ventiladores, diálise] e principalmente com equipe multiprofissional especializada”, diz a nota.
Outra preocupação dos gestores de saúde diz respeito ao orçamento de 2021. Não estão previstos os recursos extras que foram liberados devido à pandemia (o que significa cerca de R$ 40 bilhões a menos nos cofres da saúde). O reajuste que consta na PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual) é de apenas 1,1%.
Em reunião na Câmara dos Deputados, os gestores de saúde alertaram para o risco de sérios problemas para a manutenção dos serviços, considerando que a pandemia não terminará em 31 de dezembro deste ano.
A Amib tem chamado a atenção para o esgotamento dos profissionais de saúde. “É emocionante receber aplausos da sociedade, mas ao presenciarmos as homenagens póstumas aos nossos colegas, sentimos também o peso de ser quem somos. Um grupo de profissionais que segue na linha de frente trabalhando com uma sobrecarga física e emocional jamais descrita na história da medicina.”
O intensivista Ederlon Rezende diz que as equipes estão exaustas física e mentalmente. “Mesmo nós, intensivistas, nunca passamos por uma situação assim. Ontem [terça], um casal que estava internado com Covid piorou e teve que ser intubado. Eles pediram para se despedir antes da intubação. Mexe muito com a gente, é de cortar o coração.”