Pneumologista e professor livre-docente do Departamento de Cárdio Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo-USP, Daniel Deheinzelin está na linha de frente no atendimento aos pacientes da Covid-19 em São Paulo desde o início da pandemia. Em entrevista ao Jornal Cidade, o médico que trabalha nos hospitais Sírio-Libanês, Nove de Julho e Oswaldo Cruz, na Capital, alerta para os perigos do novo coronavírus.
JC – Quais os danos que o vírus causa ao organismo? Já é possível estabelecer um padrão ou cada caso é um caso?
Deheinzelin – Primeiro é preciso dizer que 3 de cada 5 infectados serão totalmente assintomáticos. Pacientes sintomáticos podem ter desde um quadro de resfriado até quadros mais graves. O principal e mais frequente é um quadro de pneumonia. Mas sabemos que o vírus pode afetar o olfato, o paladar, causar diarreia, sintomas neurológicos, afetar os rins, o coração e causar tromboses em diferentes órgãos. E a forma mais grave é uma insuficiência respiratória com queda importante dos níveis de oxigênio no sangue, o que está sendo medido através da saturação do sangue.
JC – Em relação às pesquisas, nesse momento, há algum tratamento contra a Covid-19?
Deheinzelin – Não há nenhum tratamento específico para eliminar o vírus, ou seja, não temos uma Medicação antiviral que funcione para diminuir a carga de vírus no organismo. Um exemplo de antiviral efetivo são os medicamentos para HIV que fazem os níveis de vírus em circulação no paciente chegarem a zero. Então estamos discutindo tratamentos de suporte, visando estabilizar as alterações que o vírus causa, para dar tempo para que o organismo elimine o vírus com seus mecanismos de defesa.
JC – Nos hospitais onde o senhor atua, os pacientes são medicados com cloroquina ou com outro medicamento? Qual sua opinião sobre o uso da substância?
Deheinzelin – Toda vez que nos deparamos com uma epidemia, uma série de tratamentos que não têm eficácia comprovada são utilizados. A cloroquina está nessa categoria, ou seja, nunca foi comprovada por estudos clínicos a sua eficiência em doenças virais. Ela vem sendo testada desde a década de cinquenta (usada para tratar mononucleose, que depois foi entendido ser uma doença autolimitada) , sem efeitos documentados. Foi usada na epidemia de influenza H1N1 em 2009 e os estudos na época não mostraram efeitos benéficos. Agora com o coronavírus ela voltou à tona, mas os poucos trabalhos que estão surgindo não mostram eficiência e, pior, mostram uma frequência muito elevada de efeitos colaterais, inclusive levando à morte por arritmia. Por essas razões, não prescrevo cloroquina aos pacientes que atendo.
JC – Outro medicamento que tem sido apontado como possível tratamento é a ivermectina. Já existe comprovação de sua eficácia?
Deheinzelin – Sem confirmação.
JC – Existem ainda muitos mitos envolvendo o novo coronavírus?
Deheinzelin – Não podia ser diferente. O vírus foi identificado como causador de uma nova doença em 12/01/2020, há menos de seis meses. É a primeira vez que o mundo acompanha uma epidemia em tempo real, com modelos matemáticos altamente complexos. E vejo pessoas sem formação em epidemiologia discutindo esses artigos como se entendessem do assunto. A ciência por trás dos dados discutidos na maioria das vezes é de baixa qualidade (estudos retrospectivos, com número de casos pequeno ou trabalhos experimentais como o francês que sugeriu o efeito da cloroquina, que não só não foi publicado, como foi retirado dos sites onde estava pelos autores). Esse dado, que é natural numa doença que se conhece há menos de seis meses, aliado às fake news, é o que tem mais dificultado o cuidado desses pacientes.
JC – No seu dia a dia, com quais mitos o senhor mais se depara?
Deheinzelin – Temos problemas no diagnóstico, já que para diagnóstico do vírus por material de garganta nem sempre é sensível o bastante (existe um momento ideal na evolução do quadro quando a positividade é maior, em geral entre o terceiro e quinto dias de sintomas), problemas no tratamento, como a recomendação de usar cloroquina mesmo sem evidências de funcionamento e problemas com o diagnóstico de assintomáticos, já que a sorologia não é sensível o bastante. Com relação à sorologia é preciso dizer que nem temos certeza se todos que tiveram contato com o vírus vão desenvolver anticorpos. Provavelmente não. Por outro lado as pessoas estão com medo de ir aos hospitais ou prontos-socorros e muitas outras doenças graves estão ficando sem tratamento, o que aumenta o número de mortos.
JC – E de que forma isso agrava ainda mais a situação na pandemia?
Deheinzelin – Acho que o medo de saber se está doente ou não e o medo de, ao ir tratar outros problemas de saúde, pegar o vírus, agravam mais a pandemia. Pacientes ficam sintomáticos e tendo contato com outras pessoas, aumentando a transmissão.
JC – Como o senhor analisa a decisão do governo estadual de flexibilizar o funcionamento do comércio e de outros setores neste momento?
Deheinzelin – Penso que não deveria ser flexibilizado nesse momento, já que não atingimos o pico e temos uma taxa de transmissão ainda maior do que um. Isso quer dizer que um infectado transmite para mais do que uma pessoa. Do ponto de vista médico a flexibilização é um risco nessas condições.
JC – Quantos pacientes com Covid-19 o senhor já atendeu?
Deheinzelin – Internados mais de cem e mais outros cem com formas leves de doença tratados em regime ambulatorial.
JC – Com essa experiência, qual dica o senhor daria para os médicos que trabalham em cidades onde a doença começa a se manifestar?
Deheinzelin – A primeira é recomendar que as pessoas procurem assistência no início dos sintomas. Inicialmente se pediu que as pessoas ficassem em casa se os sintomas fossem leves, mas hoje isso parece errado. A piora em geral se dá entre o quinto e décimo dia e nessa hora o quadro pode ser mais grave e difícil de tratar. A segunda é ficar atento a um distúrbio de coagulação que estamos vendo com muita frequência. Os pacientes têm um quadro de hipercoagulabilidade que tem sido documentado na maioria dos trabalhos em que isso foi estudado. E o tratamento com anticoagulante, especificamente a heparina (QUE SÓ DEVE SER UTILIZADA SOB ORIENTAÇÃO MÉDICA), tem beneficiado um grande número de pacientes com as formas graves da infecção, resultado que só mais recentemente está sendo comprovado em todo o mundo.
Currículo
Daniel Deheinzelin é pneumologista e professor livre-docente pelo departamento de Cárdio Pneumologia da FMUSP. Trabalhou no Hospital das Clínicas por quase 20 anos e na UTI do Hospital ACCamargo por 10 anos. Atualmente atende em seu consultório e nos hospitais Sírio-Libanês, Nove de Julho e Oswaldo Cruz, em S. Paulo.
No site de vídeos YouTube, Deheinzelin é conhecido pelas participações nas entrevistas do médico e apresentador Dráuzio Varella.