SÃO PAULO, SP, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Estudantes de escolas públicas têm desempenho médio abaixo do das particulares no Enem, principal porta de entrada para o ensino superior. É na prova de inglês, porém, que os alunos da rede estatal enfrentam maior dificuldade em relação à rede privada.

Análise feita pela Folha em todas as questões aplicadas no Enem entre 2010 e 2019 mapeou aquelas em que os estudantes da rede pública erraram de forma desproporcional: 18 das 50 perguntas de inglês no período tiveram viés estatístico alto e moderado contra a rede pública.

Inglês representou 46% dessas questões que mais prejudicaram a rede pública sob essa metodologia, apesar de somar apenas 3% do exame total.
Esse viés é verificado ao se comparar estudantes das duas redes, com habilidades (desempenhos) semelhantes; identificados esses grupos, analisam-se quais questões os alunos da escola pública erraram de forma desproporcional.

Dito de outra forma, alunos de bom desempenho nas redes pública e particular têm notas semelhantes, por exemplo, em matemática. Mas não em inglês.

O sistema público concentra 88% das matrículas do ensino médio, atendendo em geral a população mais pobre.

Para se definir o viés das questões, a Folha considerou limiares estatísticos utilizados pela ETS, instituição americana que aplica o exame de certificação Toefl e avaliações de larga escala para o ensino básico nos Estados Unidos.

A prova de inglês prejudica o desempenho geral dos estudantes da rede pública no Enem. Usando a mesma metodologia utilizada no exame (TRI), a reportagem simulou a retirada da matéria na prova. Estudantes da escola pública subiriam em média 11 mil posições em 2019, num universo de 900 mil estudantes analisados.

A faixa em que haveria mais ganho de posições seria entre os alunos do sistema estatal que pontuaram entre 450 e 600 pontos (a maior nota da prova foi 802).

Os estudantes com melhor desempenho, apesar de ganharem menos posições, foram igualmente prejudicados por esse viés, pois na faixa acima dos 600 pontos em geral se disputam vagas mais concorridas no ensino superior; poucos pontos são suficientes para classificar o candidato ou não.

A prova de inglês prejudica o desempenho geral dos estudantes da rede pública no Enem. Usando a mesma metodologia utilizada no exame (TRI), a reportagem simulou a retirada da matéria na prova. Estudantes da escola pública subiriam em média 11 mil posições em 2019, num universo de 900 mil estudantes analisados.

A faixa em que haveria mais ganho de posições seria entre os alunos do sistema estatal que pontuaram entre 450 e 600 pontos (a maior nota da prova foi 802).

Os estudantes com melhor desempenho, apesar de ganharem menos posições, foram igualmente prejudicados por esse viés, pois na faixa acima dos 600 pontos em geral se disputam vagas mais concorridas no ensino superior; poucos pontos são suficientes para classificar o candidato ou não.

Um atenuante no sistema superior público é que há cotas em boa parte das instituições (ou seja, alunos do ensino médio público disputam entre si)
O Enem também é usado como critério para permitir o estudante ingressar no ensino superior por meio do Prouni (bolsas em universidades privadas) e Fies (financiamento estudantil).

Inglês e português são considerados no mesmo bloco de questões de Linguagens no Enem. A metodologia do exame busca identificar chutes, ou seja, erros e acertos inesperados de acordo com o perfil do candidato dentro de cada área.

Assim, um bom aluno da escola pública que foi bem em português, mas errou consideradas fáceis em inglês, terá sua nota rebaixada, pois não se esperava que ele errasse tantas questões nessa área.

O pesquisador Ricardo Primi​, especialista em avaliação e psicometria, afirma que esse volume desproporcional de erros presentes para uma determinada população é algo que avaliações de larga escala deveriam buscar evitar (efeito chamado de Funcionamento Diferencial do Item).

“O inglês é uma língua que depende muito da oportunidade [fora do ensino regular] de ter aprendido aquilo, é de fato uma dimensão diferente”, diz ele, que é professor da Universidade São Francisco. “Não dá para dizer que todo mundo que sabe muito bem português sabe inglês. Mas quando é colocado na mesma prova, assume-se que sim.”

O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), responsável pelo exame, informou que não tem análise específica sobre o impacto do inglês para alunos das redes oficiais. O MEC (Ministério da Educação) não respondeu à Folha.

Não há informações oficiais sobre o conhecimento dos brasileiros em inglês. Pesquisa do British Council de 2013 indicou que 5% da população com mais de 16 anos afirmou ter algum conhecimento da língua. O percentual chegou a 10% no grupo de jovens de 18 a 24 anos.

Outro levantamento da EF Education First, empresa de educação especializada em intercâmbio, coloca o Brasil entre os países com baixa proficiência. Na 53ª posição no ranking de 2020, entre 100 regiões e países analisados, o Brasil ficou atrás de Argentina, Paraguai, Bolívia e Cuba.

É LEI
A LDB (Lei de Diretrizes e Bases) da Educação preconizava desde 1996 a oferta de ao menos uma língua estrangeira a partir dos anos finais do ensino fundamental. Não definia o inglês como obrigatório, mas este sempre foi o mais comum.

Desde 2017 o ensino do idioma se tornou obrigatório a partir do 6º ano do ensino fundamental. Apesar disso, a realidade nas escolas acumula grandes dificuldades.

A inadequação de formação dos professores que lecionam língua estrangeira é a maior no ensino fundamental entre todas as disciplinas, segundo dados do MEC. No ensino médio, mais da metade dos docentes de língua estrangeira não tem formação na área -o indicador só é pior em sociologia.

Somente com a Base Nacional Comum Curricular, aprovada em 2018 e em processo de implementação, é que se avançou para definir o que se espera que seja ensinado. O documento também busca maior foco nas habilidades de uso do idioma.

O estudante Kaique dos Santos, 19, mora no Capão Redondo, zona sul da capital paulista, e sempre estudou em escola pública. Ele não tem boas memórias com relação ao inglês.

“As aulas eram bem precárias. Muitas vezes nem tinha professor, e quando tinha a professora passava um exercício e era isso, acabou o trabalho”, diz ele, que busca uma vaga em engenharia e se matriculou no Cursinho da Poli para se preparar melhor.

“Eu não tenho grande dificuldade porque sempre me interessei pela tradução de música, anoto as palavras que me interesso. Acho que fui bem nesse Enem, mas pra quem não tem celular e acesso fica mais difícil.”

VERBO TO BE
Se o trabalho de inglês nas escolas fosse articulado com outras disciplinas, bons resultados viriam com mais facilidade, avalia a professora Ana Gilda Leocadio, 50, com quase três décadas de carreira na rede pública e privada.

Leocadio leciona hoje na rede municipal de São Paulo e tem experiências com ensino médio e educação de jovens e adultos, com atuação sobretudo na periferia de São Paulo.

“A gente precisa analisar o que se espera da educação pública em língua estrangeira, que é muito pouco, e não se espera que um aluno que esteja na periferia saiba inglês. Quando os alunos chegam no ensino médio, falam ‘professora, de novo ‘verbo to be'”, diz.

Ela cita como problemas falta de materiais específicos, quantidade de alunos por sala e o próprio desprestígio da disciplina na escola. Mas o aprendizado é possível, diz ela, com planejamento e envolvimento profundo na realidade escolar.

“É um trabalho para durar mais de três anos com a mesma turma, precisa reconhecer a comunidade escolar, o entorno, e daí vão surgindo assuntos que têm a ver eles.”

Ela representa um perfil incomum entre docentes de inglês: tem formação específica na área, longos vínculos com a mesma escola e é negra.

“Trabalhei em Grajaú e Parelheiros [zona sul de São Paulo]. Quando chegava na sala e dizia ‘Hello, my name is Ana’, era um ‘noooossa’. Puro status! Porque não se espera que uma mulher negra seja professora de inglês, mas os alunos se veem representados em mim e acreditam mais que é possível.”

Estudo do British Council sobre políticas públicas para o ensino do inglês, de 2019, fez um mapeamento dessa oferta no Brasil evidenciando aspectos que incluem deficiências no currículo, no perfil e na formação dos professores.

A partir de dados oficiais, a pesquisa mostra que quase quatro em cada dez docentes da matéria são temporários

“O inglês é um marcador social”, diz Cíntia Toth Gonçalves, gerente sênior para o inglês do British Council, organização internacional do Reino Unido. “Persiste até hoje no Brasil a noção de que não se aprende inglês na escola, e isso ocorre na rede privada também, como se curso de idioma fosse o ambiente propício para isso”, diz

O British Council tem um observatório que reúne informações sobre o tema e tem ações, em parceria com outras instituições, com impacto nas escolas e na formação de docentes.

“Com aprovação da Base, a língua inglesa entra com a prioridade na comunicação dos alunos. É a ideia de o inglês ser uma língua franca, de comunicação no mundo”, diz Gonçalves.

O professor da USP Ivan Siqueira, membro do CNE (Conselho Nacional de Educação), diz que a Base Curricular é um passo importante para a melhoria do ensino no país.

“A Base não resolve tudo, mas com a delimitação de competências e habilidades temos agora uma bússola.”

Siqueira explica que países como Chile, Colômbia e Espanha colheram frutos a longo prazo depois de adotarem programas estruturados para o ensino da língua. A Espanha, por exemplo, iniciou em 1996 uma política com foco na melhoria do idioma já a partir da educação infantil.

“Políticas que deram certo envolvem currículo, material didático, formação de professores, mas têm de durar. Não dá para fazer programas de um mês ou um ano, não vai ter resultado.”

ESPANHOL
No Enem, o estudante pode escolher entre inglês e espanhol como língua estrangeira. Os dados indicam que tanto na rede pública quanto na particular boa parte dos estudantes não tem conhecimento adequado de nenhuma das duas, mas opta pelo espanhol por entender que pode se sair melhor. O resultado, porém, não é bom.

Se divididos os candidatos em quatro grupos (rede particular que optaram por inglês, pública em inglês, particular em espanhol e pública em espanhol), a média de acertos é maior nos dois grupos que elegeram o inglês.

No sistema público, 50% dos estudantes optaram por inglês no último exame analisado (2019); na particular, perto de 70%.

METODOLOGIA
As análises foram feitas considerando os alunos concluintes do ensino médio regular que tinham informação sobre suas escolas nos microdados.

Verificação de um viés em cada item foi feita para cidades com mais de mil alunos, de escolas públicas e privadas, utilizando o teste de Mantel-Haenszel, que mede a diferença na porcentagem de acertos entre alunos com notas próximas dos dois grupos.

As medidas nacionais apresentadas são médias ponderadas pela quantidade de alunos de cada cidade. A classificação do efeito do viés como negligente, médio e grande foi feita de acordo com a classificação proposta pela Educational Testing Service, empresa americana sem fins lucrativos de avaliação educacional responsável por testes como Toefl.

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