REINALDO JOSÉ LOPES – SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – O Brasil levou cerca de cinco meses para passar de 100 mil mortes para 200 mil mortes causadas pela Covid-19, mesmo intervalo que transcorreu entre os óbitos iniciais ocasionados pela doença e as primeiras 100 mil vítimas brasileiras.
Apesar dessa aparente simetria, porém, há indícios de que os dois momentos ocorrem em contextos opostos.
“Com 100 mil óbitos, a gente estava no começo da queda de mortes. Houve um longo platô [estabilização] e depois essa diminuição da gravidade da pandemia, uma flexibilização e a sensação errônea de que a coisa estava no final, de que estava melhorando”, diz o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19.
“Com 200 mil, vemos uma ascensão da doença. Considerando que a notificação está bem atrasada, com uma espécie de represamento por causa da sobrecarga dos hospitais e das festas de fim de ano, infelizmente teremos um estouro”, afirma.
Em parte, o país pode ter caído nessa armadilha por causa de aspectos contraintuitivos da dinâmica da doença; por outro lado, a falta de coordenação no combate à pandemia em nível nacional também deve ter contribuído para o problema.
Ambos os pontos podem ser ilustrados pela comparação entre o Brasil e a Europa, destaca Schrarstzhaupt. No continente europeu, após o controle inicial da transmissão com os lockdowns do primeiro semestre de 2020, a reversão de tendência -ou seja, o momento em que o número de casos diários voltou a crescer- se deu já no começo de julho.
No entanto, como existe um atraso considerável entre esse momento de virada e o crescimento descontrolado de novos casos, assim como o que existe entre novos casos e mais internações e entre internações e aumento de óbitos, a Europa só colocou em prática ações seriamente restritivas, como novos lockdowns, a partir do fim de outubro de 2020. Não há nenhuma razão para acreditar que o processo não esteja se repetindo no Brasil.
A grande diferença entre a Europa e o território brasileiro, no entanto, é a falta de coordenação entre regiões. “Por lá, ou abria tudo ou fechava tudo, com diferenças pequenas, na escala de uma semana, entre os países”, explica o pesquisador.
“Aqui, por outro lado, houve um momento em que a gente parecia estar num platô eterno, sem mudanças. Mas, quando a gente olhava para os diferentes estados, percebia que a situação de cada um podia ser muito diferente da dos outros, por causa da grande variação de medidas de fechamento ou flexibilização. Por isso a gente nunca conseguiu uma redução de casos e óbitos tão grande quanto a do verão europeu.”
Com a grande heterogeneidade entre estados e regiões brasileiras, a ilusão de que certos locais tinham sido relativamente poupados pela pandemia ainda parecia ficar de pé quando a marca de 100 mil vítimas foi atingida.
De lá para cá, o cenário mudou para pior. Estados da região Sul, como Rio Grande do Sul e Paraná (cerca de 9.000 e 8.000 mortos, respectivamente), que antes pareciam ter controlado melhor seus surtos, agora se aproximam dos 10 mil óbitos do Ceará, o mais atingido do Nordeste. Algo parecido vale para Minas Gerais, hoje o terceiro estado em número de vítimas.
“A conectividade entre as cidades é um fator muito importante e tem sido bastante ignorado”, destaca Renato Pereira de Souza, pesquisador do Instituto Adolfo Lutz em Taubaté (SP).
“Aqui no vale do Paraíba, temos realizado alguns estudos apontando justamente como a circulação do vírus nas cidades maiores e de maior circulação influencia o que ocorre nas menores. Cidades como São José dos Campos e Taubaté, bem como o litoral Norte, têm um impacto enorme nas áreas ao redor, o que sugere a necessidade de uma resposta conjunta e sinérgica, mas está difícil. Nem ao Plano São Paulo [organizado pelo governo do estado] estão aderindo.”
No que diz respeito à própria doença, a mudança recente mais preocupante é o surgimento de novas variantes do vírus Sars-CoV-2 com potencial aparentemente maior de infectar pessoas, como a B117, já identificada no Brasil e se espalhando velozmente em território europeu, a começar pelo Reino Unido.
“Durante algum tempo nós tivemos uma circulação de linhagens genéticas do vírus muito similares entre si e relativamente conservadas [com poucas mutações]”, explica o virologista Fernando Spilki, coordenador da Rede Corona-ômica, do Ministério da Ciência e Tecnologia, que tem como objetivo justamente mapear a variabilidade genética do Sars-CoV-2 no Brasil.
“Agora, tudo indica que se abriu um leque de diversidade, com a introdução e geração de novas linhagens, e isso deve se intensificar enquanto não temos um processo de vacinação ocorrendo”, diz Spilki, que é professor da Universidade Feevale (RS).
Um cenário como esse preocupa não necessariamente porque a evolução viral causaria sintomas mais graves nos doentes -até onde se sabe, a variante B117 não tem esse efeito, por exemplo. A questão é que basta uma eficiência maior para infectar pessoas para que, no acumulado, os efeitos sobre a saúde pública sejam mais graves, já que o número absoluto de pessoas internadas e mortos também acaba sendo maior.
“Tanto a transmissão quanto a virulência [agressividade do vírus] são características que dependem também do hospedeiro e de sua resposta à infecção. Então, a percepção dessas alterações e de seu impacto é por vezes difícil e talvez fique clara só após alguns meses”, pondera Souza.
Um elemento que não parece ter mudado entre os dois momentos, ou no máximo mudou muito pouco, é a capacidade de identificar com precisão os casos, fazendo testes de PCR (o mais confiável, a partir do material genético do vírus) de modo mais intenso.
Uma maneira de medir isso é a chamada positividade, diz Schrarstzhaupt – ou seja, quantos testes dão resultado positivo para Covid-19 divididos pelo total dos testes feitos. Considera-se que, se uma grande proporção de testes feitos dá resultado positivo, é sinal de que o surto não está sendo controlado direito e muitos casos estão escapando da detecção -e é isso o que continua sendo constatado no Brasil.
Rômulo Leão Silva Néris, virologista e doutorando da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), vê mais semelhanças do que diferenças entre agosto de 2020 e o momento atual.
“Ainda estamos batendo nas mesmas teclas, tentando provar para as pessoas que não existe tratamento eficaz e escalável e que distanciamento e uso de máscaras funcionam”, lamenta ele. “O país acabou atuando na base do achismo, da sabedoria popular, com algumas decisões municipais e estaduais e essencialmente ‘não decisões’ do lado federal.”
“Tenho a impressão de que estávamos mais conscientes e chocados com os 100 mil. Agora, chegamos aos 200 mil achando que tudo está normal. Perdemos a capacidade de nos chocar”, diz a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência.