O número de alunos autodeclarados negros matriculados nas universidades federais do Brasil aumentou quase 200% nos últimos nove anos. Em 2012, quando a Lei de Cotas para o ensino superior foi implementada, eles representavam 20,5% do total de alunos das federais. Em 2020, o número passou para 47,4%. 

Os dados são do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Para além da questão racial, no entanto, alunos egressos da rede pública de ensino sempre enfrentaram imensos desafios para acessar vagas da universidade pública no Brasil.

A lógica sempre foi clara – e perversa, no sentido da ampliação das desigualdades sociais: alunos de escolas particulares, mais bem estruturadas e com desempenho quase sempre superior às públicas nas avaliações oficiais de qualidade de ensino, enfrentam processos de seleção com muito mais preparo e condições.

Políticas afirmativas postas em prática pelas próprias universidades públicas, como a Reserva de Vagas implementada pela USP (Universidade de São Paulo), por exemplo, já mostram resultados importantes. Em 2020, segundo a instituição, 47,8% de seus alunos vieram de escolas públicas.

A personagem principal da ‘Reportagem da Semana’ exemplifica o poder que as políticas afirmativas têm para democratizar o acesso ao ensino superior gratuito no Brasil. E mostra que, quando somadas ao apoio familiar, podem resultar em conquistas. É o caso de Camila Fernandes de Oliveira.

Aos 19 anos, filha de pedreiro e empregada doméstica, tendo feito todos os anos dos ensinos fundamental e médio em escola pública, sem passar por cursinhos pré-vestibulares comunitários ou privados, ela conseguiu uma vaga num curso de elite, em termos de concorrência: vai cursar medicina na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

“Sendo quem eu sou e de onde vim, é uma vitória extraordinária. Hoje, pessoas pobres e que estudaram em escola pública igual a mim, com a mesma realidade que a minha, não têm tantas oportunidades que as pessoas de classe média, de escola particular. Sempre enfrentei muitos desafios, mas sempre consegui ter o estudo como minha prioridade”, disse ela ao Jornal Cidade.

Camila, moradora no Novo Wenzel, em Rio Claro, contou que considera a entrada para a universidade federal como uma vitória quase impossível. “Quase. Eu venci. Passei e desejo que mais pessoas como eu tenham esse tipo de oportunidade, [ocupando] nossos espaços de direito, [inclusive] na medicina e outros cursos que são mais elitizados.”

A jovem afirmou que sempre foi muito regrada. Nunca estudava demais e também nunca tirava tempo demais para descansar. “Tinha meus horários de estudo e lazer e conseguia administrar muito bem. Namorar, assistir filmes e também manter o rendimento de segunda à sexta-feira nunca foram problema para mim”,  relatou.

Ela fez questão de reforçar que só conseguiu o feito devido a base que teve na Etec Prof. Armando Bayeux da Silva, em Rio Claro. “Nessa escola, encontrei professores muito bons, que me ensinaram muito. Basta ter foco e ir em busca do seu objetivo. Não desista. Você consegue”.

Com lágrimas nos olhos, a mãe de Camila, Marinalva Fernandes de Souza de Oliveira, de 48 anos, se emocionou ao falar da filha. “Trabalhava de empregada doméstica numa casa e um patrão me disse: ‘como podem encherem a casa de filhos? Não conseguem nem dar estudo a eles’. Eu respondi: ‘meus filhos vão estudar’. Eu lutei muito e hoje só tenho orgulho da Camila e de todos eles”, comentou.

Camila com os pais Marco e Marinalva Fernandes de Souza Oliveira na sala de casa, no Novo Wenzel

Mais dois alunos da Bayeux da Silva são aprovados em medicina 

Livia Porto, de 18 anos, também se esforçou para conseguir uma vaga numa universidade pública de medicina. A jovem, que mora no Cidade Jardim, vai estudar na USP (Universidade de São Paulo) campus Bauru. Além do ensino médio, ela optou também por fazer um cursinho particular.

“Foi uma rotina bem intensa, muito louca, muitos estudos, cursinhos acompanhados da escola, mas tudo valeu a pena. O esforço foi totalmente recompensado com a aprovação. Não tem nada que explique a energia que a gente sente na hora de ver o nosso nome na lista”.

Livia disse que desde que entrou no ensino médio, já tinha o foco de passar direto para a universidade. “Dei tudo de mim para conseguir isso. Coloquei na cabeça uma meta e fui. Desde o segundo colegial ia para a escola de manhã e fazia cursinho à noite. Abri mão de festas, amigos, mas no final, tudo vale a pena”, desabafou.

Sobre a  Bayeux, ela afirmou estar muito agradecida, pois o ensino a preparou não só para a vida profissional, mas para a vida adulta. “Vim de escola particular, e, quando entrei na Etec, foi um choque, pois o sistema de ensino é totalmente diferente, só que muito mais humano. A escola me ensinou a ser gente de verdade. Tive auxílio dos professores nos exercícios que não sabia resolver. Todo o suporte que tive aqui foi essencial para chegar no meu objetivo.”

Já Rafael Alves Lopes, também de 18 anos, foi outro aluno da escola que se esforçou e conseguiu uma vaga. O jovem vai cursar medicina na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Ele também optou por um cursinho online.

“Com a pandemia, o maior desafio foi em relação às aulas presenciais. Tive de readequar todo o cronograma. Na Etec, o ensino sempre foi de muita qualidade, principalmente a base das matérias nos dois primeiros anos de ensino médio, muito importante para a minha aprovação. Sempre tem uma matéria ou outra para estudar por conta. Na pandemia, foi o diferencial. Fiquei muito feliz quando vi o resultado. É uma sensação de dever cumprido”, descreveu.

Jovem, que mora no Cidade Jardim, vai estudar na USP (Universidade de São Paulo) campus Bauru
Jovem, que mora no Centro, vai cursar medicina na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos)

Etecs aprovam mais de dois mil alunos em universidades públicas 

O ano de 2020, marcado pela escalada da pandemia, foi também tempo de aprendizado e superação para os alunos das Escolas Técnicas Estaduais.

A adaptação ao ensino online e a conquista de mais autonomia foram habilidades necessárias, que serviram para ajudar no ingresso às universidades. 

Levantamento do Centro Paula Souza aponta que jovens de 140 Etecs conquistaram 2.033 vagas em instituições públicas de Ensino Superior do país. Desse total, 1.452 foram em universidades paulistas e 581, em faculdades de outros estados ou instituições federais.

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