Cada um faz o que pode para fugir da rota do vento nas noites mais frias. Se aglomeram em esquinas, marquises ou em qualquer canto em busca de um lugar para se esquentar. Para quem não tem casa, o frio acaba sendo um companheiro incômodo durante a madrugada. Essa é a vida das pessoas em situação de rua, tema da ‘Reportagem da Semana’ deste domingo (18).
Nos últimos meses, enquanto todo mundo ficava em casa para se proteger do coronavírus, eles estavam lá, à mercê da própria sorte. A chegada do inverno escancara a desigualdade social, que se tornou ainda mais evidente com a pandemia da covid-19. Muitos deles não possuem escolhas e a única maneira é resistir ao frio cobertos com panos, cobertores quando têm, ou até mesmo um papelão.
Pesquisas do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontam que a população em situação de rua cresceu 140% desde 2012, chegando a quase 222 mil brasileiros até março de 2020, e tende a aumentar com a crise acentuada pela pandemia. A análise constatou que a maioria dos moradores de rua (81,5%) está em municípios com mais de 100 mil habitantes, principalmente das regiões Sudeste (56,2%), Nordeste (17,2%) e Sul (15,1%).
Em Rio Claro, balanço da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social apontou que aproximadamente 80 pessoas vivem nas ruas e que, destas, várias são de cidades da região. O município chegou a registrar, nas últimas semanas, temperaturas de – 0.6ºC durante as madrugadas.
Silvia Pereira, de 48 anos, recorreu aos cobertores que ganhou das pessoas que passam por onde ela chama de casa, na esquina da Avenida 2 com a Rua 6, na região central de Rio Claro. Havia pelo menos meia dúzia no chão.
Cheia de sacolas, onde também leva alguns pertences da vida pré-rua, ela se abriga debaixo de um toldo. Na calçada, o jeito foi forrar com panos para tentar se aquecer. Ela divide o espaço com o filho Hiago, de 26 anos. Silvia o trouxe para matar a saudades dos outros três, que deixou para trás.
“A madrugada é longa. A noite é muito fria. Usamos muito cobertor, o que restou deles. Até tenho uma barraca, mas alguém pode vir e ‘tacar’ fogo na gente. Somos julgados o tempo todo. Ouvi falar que várias pessoas morreram por dormir dentro [da barraca]. Eu não quero morrer queimada. Precisamos de mais amor. Por isso meu filho me acompanha. A gente se aquece”, comentou.
Essa é a segunda vez de Sílvia nas ruas. Ela contou que não pede dinheiro, mas trabalha com reciclagem para conseguir o que considera básico. Mas nem sempre é o suficiente. Mãe e filho contam com a solidariedade dos vizinhos e de projetos sociais para se alimentarem. Questionada sobre o porquê de não procurar um abrigo, a resposta foi emocionante.
“Prefiro deixar abrigo aos idosos. Eu não cheguei nessa hora ainda. Deixo essa proteção a eles. Eu fico na rua porque sou forte. Os idosos são mais fraquinhos e com esse frio, melhor eles se acalentarem. Já vi gente morrer nas ruas de bronquite, asma, pneumonia. Não temos socorro aqui. Na UPA, temos que marcar consulta, mas nunca chega o dia. Nesse frio, eles [outros moradores de rua] se aglomeram para se aquecer, mas levam nossos objetos. Por isso não me junto”, explicou.
Com o currículo em mãos, ela segue em busca de um emprego. No papel, experiências como diarista, babá, auxiliar geral e vendedora. “Sonho em trabalhar para pagar meu aluguel e dar uma vida digna ao meu filho, que me acompanha porque gosta muito de mim. Tenho várias experiências. Quero mudar de vida. Mas, enquanto isso não acontece, a gente vai vivendo como dá. Existe amor na rua”, falou emocionada.
Cachaça, sopa e cobertor
Marcela Jóia, de 44 anos, contou à reportagem do JC que recorreu a cachaça, sopa e cobertor para se esquentar na região central da cidade. Ela se abriga em uma pequena cama feita de panos e divide o espaço com vários moradores de rua.
“Tomamos sopa, quando o pessoal da igreja traz, as mantas, que também foram de doação e a parceria dos amigos. Só assim para se esquentar. Já dormi em vários lugares da cidade, inclusive na Estação, mas tiraram a gente de lá”, disse.
Na rua há mais de 10 anos, ela explicou que está nessa vida por problemas familiares. Mãe de três filhas, Marcela comentou que foi abusada dentro de casa e que na rua é melhor e que cada um tem sua tribo.
“Cada um é de uma tribo aqui. Eu sou das ‘pingaiadas’. Eu bebo cachaça, mas nunca fiz mal para ninguém. Todo mundo gosta de mim, inclusive a galera das lojas. Não tenho passagem pela polícia, nunca assaltei, como diz meu sobrenome, sou jóia”, falou.
Ex-morador de rua se torna vereador em Rio Claro
Irander Augusto é um respeitado vereador na cidade de Rio Claro pelo Republicanos. Mas, antes disso, viveu mais de um ano nas ruas. Em entrevista ao JC, ele comentou como sua vida teve uma reviravolta.
“Com o apoio da minha família, consegui dar a volta por cima e também a minha fé em Deus”. Ele deixou um recado para as pessoas que estão nas ruas. “Para tudo tem solução. Basta querer. Nada é impossível. Basta crer e ter força de vontade. Não importa a situação, é só ter vontade de vencer”, finalizou.