Faz diferença ter uma mulher à frente do governo durante a pandemia de coronavírus? Não, se o critério for números. Por vários outros motivos, a resposta pode ser sim.

Começando pelos números, não dá para dizer que elas se saiam melhor em relação ao indicador que melhor traduz os danos do coronavírus: a taxa de mortes em relação à população.
É uma mulher, Sophie Vilmès, a primeira-ministra da Bélgica, que até este domingo (26) registrava 61,2 mortos por 100 mil habitantes -recorde entre populações maiores que 1 milhão de habitantes.
Mas à frente de 2 dos 18 países com nenhuma morte até agora, a Namíbia e o Nepal, estão a primeira-ministra Saara Kuugongelwa e a presidente Bidhya Devi Bhandari, chefe de Estado do governo parlamentarista nepalês.
Das 195 nações acima de 1 milhão de habitantes, 22 (11%) têm chefe de governo, chefe de Estado ou membro de governo colegiado do sexo feminino. Em quase um terço (7) delas, a taxa de letalidade supera a média (2,9 mortos/100 mil habitantes), nos 174 de chefia exclusivamente masculina, 10% estão acima da média.
Cruzar sexo do governante com impacto letal do coronavírus não quer dizer nada, porém. Para começar, não há segurança sobre os dados divulgados até agora. Nem todo governo tem estrutura de coleta, e os critérios de divulgação variam.
Mesmo que fossem exatos e comparáveis, os índices brutos diriam pouco. Os países estão em estágios diferentes da pandemia, suas populações têm parcelas diversas de velhos, desnutridos e doentes, seus sistemas de saúde têm mais ou menos hospitais, UTIs, testes, médicos, enfermeiros, e seus cofres públicos, mais ou menos dinheiro para socorrer a população.
Tudo isso afeta a mortalidade diretamente, o que já não se pode dizer do número de cromossomos X de quem está no volante.
Se as estatísticas são inconclusivas, o que tem chamado a atenção para essas líderes durante a pandemia é a atitude de algumas delas. “Também tenho vontade de abraçar meus amigos”, disse em março, a primeira-ministra norueguesa, Erna Solberg, depois de fechar creches e escolas em todo o país e decretar quarentena.
Não era um discurso na TV, mas uma seção de respostas a perguntas infantis.
“Por causa do coronavírus, a vida no dia a dia ficou muito diferente, e muitas crianças acham isso assustador. É ok sentir medo quando tantas coisas grandes acontecem ao mesmo tempo”, disse ela aos entrevistadores-mirins, que queriam saber se ficariam sem festa no aniversário e quanto tempo leva para aprontar uma vacina.
Sua vizinha dinamarquesa, a premiê Mette Frederiksen, também conversou com os pequenos, mas fez mais sucesso com um vídeo em que lavava louças cantando um hit do pop escandinavo, a música “Vågner I natten” (acordando à noite), do grupo by Dodo and the Dodos.Do outro lado do planeta, a premiê da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, avisou às crianças que o coelhinho da Páscoa e a Fada dos Dentes estavam muito ocupados com suas famílias durante a quarentena e talvez não pudessem aparecer neste ano.
O que as três manifestações têm em comum, além de percorrerem o noticiário de todo o mundo, é o que poderia ser chamado de orientação para pessoas (cuja tradução, no mundo doméstico, é cuidado maternal).
Não é exclusividade das mulheres, mas faz parte do universo cultural no qual elas são criadas e pode afetar a forma como se expressam como líderes, afirma Gabriela Ramos, chefe de equipe da OCDE, que coordenou há uma semana um documento sobre o impacto da pandemia nas mulheres.
Não se trata apenas de doçura ou empatia, mas de decisão, diz Gabriela: “Pela forma como educamos as meninas em geral, elas tendem a ser mais avessas ao risco quando a vida das pessoas está em jogo. O que vimos foi um movimento rápido para proteger a população, sem hesitar com cálculos de custo-benefício em relação à economia”.
Dinamarca, Noruega e Nova Zelândia implantaram quarentenas rigorosas num estágio inicial da pandemia, enquanto outras líderes evitaram os confinamentos, mas agiram rápido. Na ilha caribenha de São Martinho, com pouco mais de 40 mil habitantes e apenas duas UTIs, a primeira-ministra Silveria Jacobs fez outro discurso que atraiu likes na internet, no qual pede de forma enérgica que seus cidadãos adotem o isolamento: “Pare de se mexer. Se na sua casa não tem o pão de que você gosta, coma biscoitos. Coma cereais. Coma aveia. Coma… sardinha”.
Finlândia e Taiwan são outros países que mantiveram a mortalidade em níveis baixos sem impôr o confinamento, e suas chefes de governo entraram nas listas de exemplos de como líderes mulheres pareciam atuar melhor contra o coronavírus.
Mas elas não atuaram sozinhas. Ao lado da presidente taiwanesa, Tsai Ing-wen, estava seu vice, Chen Chien-Jen, que é epidemiologista, e a estrutura de um centro de combate a pandemias criado no país como resposta ao surto de Sars, em 2003.
A parceria poderia ter a mão inversa, como na Coreia do Sul, onde homens ocupam o topo dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mas a estratégia de combate ao coronavírus foi liderada pela chefe de centro de controle de doenças, Jeong Eun-kyeong, apelidada de “maior caçadora de vírus do mundo” por seus conterrâneos.
Gabriela Ramos diz que não é possível falar em um estilo feminino de liderar, e que mulheres podem ter as mesmas falhas que homens, mas que as desigualdades de acesso à carreira política podem explicar em parte o sucesso desse grupo de dirigentes, que inclui ainda as premiês da Alemanha, Angela Merkel, e da Finlândia, Sanna Marin: “Mulheres têm que fazer o dobro do esforço e estar três vezes mais preparadas para conseguir chegar ao topo”.
O que importa, porém, mais do que o gênero do ocupante do poder, é a inclusão e a diversidade nas decisões do governo, diz a especialista em políticas públicas, principalmente quando a pandemia afeta mais duramente as mulheres em áreas como segurança, saúde e economia.
No primeiro departamento, o confinamento expõe as cidadãs à violência doméstica, cujos números explodiram em vários países. Na saúde, são mulheres 70% dos funcionários da linha de frente hospitalar e 90% dos que trabalham em asilos -maior parcela dos expostos ao contágio e dos afetados pela falta de investimento.
Quanto ao impacto econômico, trabalhadoras têm salários menores, vínculos de emprego mais frágeis e, quando são autônomas, menos acesso ao crédito. “É preciso ter mulheres à mesa de decisões, não apenas por questão de justiça, mas para ampliar os pontos de vista e não deixar desatendidas as mais vulneráveis.”
Governos masculinos que se tornaram referência no combate à violência doméstica, como Espanha, França, Portugal e Colômbia, incluíram mulheres nas tomadas de decisão: nos dois primeiros países, as ministras da Igualdade, Irene Montero e Marlene Schiappa.
Em Portugal, uma força-tarefa: a ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, da Justiça, Francisca Van Dunem, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, e a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro. Na Colômbia, a vice-presidente Martha Lucía Ramírez Blanco decidiu que a ajuda financeira a trabalhadores afetados pela pandemia será suspensa se houver denúncias de que eles cometeram violência doméstica.
Na África do Sul, o pacote de ajuda também levou em conta as necessidades femininas, segundo a diretora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, que organizou com Gabriela uma mesa-redonda de 20 líderes para levantar diretrizes de ação durante a pandemia.
“O custo de dar esse apoio a mulheres é uma fração do que está sendo usado para socorrer empresas aéreas”, afirma Phumzile, para quem as mulheres não podem ser vistas apenas como vítimas nesta pandemia, mas como fonte de soluções.
“Precisam ser projetadas publicamente como parte dos que estão fazendo os diagnósticos e encontrando saídas.” Um dos obstáculos é justamente a falta de representação. Na enfermagem, mulheres são 90% dos profissionais, mas apenas um quarto dos chefes, mostrou relatório recente da ONU.
“Não faltam mulheres na linha de sucessão, mas elas não chegam aos cargos e não estão tomando as decisões”, diz a diretora da ONU Mulheres.
E a saúde pública é uma área em que olhar abrangente é indispensável, segundo Jim Gambone, chefe do corpo docente de saúde pública da Escola de Enfermagem e Ciências da Saúde da Universidade Capella (EUA): “É uma área que engloba medicina, biologia, antropologia, políticas públicas e educação”.
A falta de pontos de vista provoca até mesmo escassez de dados que permitam analisar o impacto da pandemia sobre os gêneros, segundo Phumzile. “Sempre que há uma crise dessa natureza e magnitude, o que sai pela janela primeiro são os serviços que protegem as mulheres da pobreza.”
Uma das principais preocupações de Phumzile e Gabriela é com as mais de 70 milhões de mulheres grávidas que precisam fazer acompanhamento pré-natal ou dar à luz durante a pandemia.
“Os bebês nascerão mesmo no meio da crise [no mundo, nascem em média 11 milhões por mês, segundo a ONU]. Já não temos mais parteiras em nossas comunidades. Que solução está sendo proposta?”, pergunta Phumzile.
Ela diz que não ficará surpresa se, passada a pandemia, descobrirmos uma tragédia ainda maior em relação a doenças e mortes entre as mulheres, não só pela falta de política específica de saúde, mas pela “pandemia silenciosa” da violência doméstica.

ANA ESTELA DE SOUSA PINTO – BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) 

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