ANA BOTTALLO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A gestão João Doria (PSDB) está usando dinheiro da Fundação Butantan que deveria ser aplicado em pesquisa e desenvolvimento no próprio instituto, segundo seu estatuto, para cobrir despesas com materiais e insumos para hospitais.
Dessa forma, o governo estadual paulista cria um novo trilho de gastos que permite livrá-lo de amarras orçamentárias e que pode ser engordado pela eventual produção da vacina contra o novo coronavírus, uma vez que esta esteja aprovada.
Em 2019, o Instituto Butantan obteve cerca de R$1,9 bilhão com venda de vacinas e soros que produz ao governo federal. Desse montante, cerca de R$ 780 milhões (40%) representam superávit do exercício, conforme balanço publicado no Diário Oficial, e deveria ser usado para a pesquisa e produção de vacinas no instituto.
No entanto, o dinheiro tem sido utilizado para custear compras de insumos e materiais estratégicos para a Secretaria de Estado de Saúde (SES), que alega emergência devido à epidemia de Covid-19. Os gastos executados a partir dessa verba já somam mais de R$ 500 milhões, ou 64% do total obtido pela fundação.
No mês passado, Doria propôs um projeto de lei segundo o qual o superávit de fundações, institutos e autarquias estaduais poderia ser usado para o ajuste fiscal devido à situação de emergência com a pandemia. Na última semana, o projeto foi alterado, e o mecanismo, limitado ao superávit produzido em 2019. O projeto ainda não foi votado.
O Instituto Butantan é responsável atualmente pela produção de seis vacinas e diversos tipos de soros para o Ministério da Saúde. A verba anual do instituto vem do orçamento estadual repassado para a SES, enquanto o dinheiro da venda das vacinas é recebido diretamente do governo federal via Fundação Butantan, entidade privada sem fins lucrativos, criada em 1989, cuja função é administrar os recursos obtidos pela produção de imunobiológicos do Instituto Butantan.
Na prática, é a fundação que controla os recursos oriundos da produção, comercialização e distribuição de vacinas para o Ministério da Saúde, sob um inciso de 2015 na lei 8.666/93 que permite contrato direto entre as duas partes, sem convênios. Essa receita representa quase 100% do fluxo de caixa anual da fundação.
Segundo acordo entre a Fundação e o Instituto Butantan, a compra de equipamentos pela fundação pode ser feita desde que os mesmos sejam cedidos ao instituto “para uso em suas atividades de pesquisa, de ensino, tecnológicas, culturais, de produção de imunobiológicos e de outros produtos afins, sem prejuízo das atividades para as quais foram adquiridos ou cedidos”, o que dá autonomia ao instituto em sua missão. Mas isso não se aplica a materiais para uso hospitalar, como os respiradores, cuja responsabilidade é do governo estadual.
O governo de São Paulo é investigado atualmente pelo Ministério Público de São Paulo pela aquisição de respiradores vindos da China sem contrato e que tiveram atraso na entrega, como foi revelado pela Folha de S.Paulo. Outra compra investigada é a de 1.500 respiradores vindos da Turquia, pagos pela Fundação, com valor unitário R$ 30 mil acima de outros modelos disponíveis no mercado.
Optar pelo uso da verba da fundação também implica na dispensa de licitação, como foi o caso dos respiradores. Isso porque, sendo uma entidade privada, ela tem certa liberdade para o uso dos recursos, mediante aprovação do balanço e dos demonstrativos de patrimônio por seu próprio conselho fiscal e da publicação destes em diário oficial.
Caso encontre alguma inconsistência, o Tribunal de Contas do Estado e o Ministério Público podem solicitar auditoria, o que já ocorreu no passado e levou ao indiciamento de onze funcionários da fundação pelo desvio de R$ 35 milhões.
De 2014 para 2018, a receita do instituto saltou de R$ 42 milhões para R$1,9 bilhão, um aumento de 4.586%, graças ao contrato com o Ministério da Saúde para o fornecimento de vacinas.
A produção de vacinas segue o modelo de parcerias de desenvolvimento produtivo, ou PDPs: o instituto importa a tecnologia de grandes farmacêuticas, como a Sanofi Pasteur e a GSK -vacinas de influenza e dTPA (difteria, tétano e pertussis acelular), respectivamente-, envasa e rotula as doses e revende ao ministério, sem que haja concorrência de preço, uma vez que a fundação é a única participante do contrato.
A única vacina com transferência de tecnologia finalizada, cujo processo, concluído em 2011, demorou 14 anos, é a da influenza. A justificativa do instituto para a longa espera foi a necessidade de readequar a fábrica e reforçar sua biossegurança.
No acordo de transferência de tecnologia firmado entre o governo de SP e a empresa chinesa Sinovac, está prevista a doação inicial de 60 milhões de doses da fabricante chinesa ao instituto paulista. O governo não divulga o acordo nem como irá realizar a produção das outras 60 milhões de doses da vacina até o final de 2021. Em todo o ano de 2019, o instituto produziu 77 milhões de doses para o SUS, sendo 60 milhões da vacina da gripe.
Se os resultados da fase 3 forem favoráveis, a produção da CoronaVac pode ter início ainda em janeiro, afirma Dimas Covas, diretor do Butantan. Os recentes casos de reinfecção do Sars-CoV-2, porém, podem indicar elevada taxa de mutação do vírus na natureza, o que implica na produção da vacina anualmente, como ocorre com a vacina da gripe.
Outras vacinas prometidas esbarram em dificuldades. A fábrica da vacina da dengue, cujo prazo definido pelo Butantan para conclusão era 2019, foi novamente adiado em 2020 diante da explosão da Covid.
Em resposta, o Instituto Butantan disse que a fábrica está pronta e aguarda estabilização das doses para solicitar à Anvisa seu registro. Afirma ainda que os atrasos na conclusão dos ensaios clínicos de fase 3 se dão “pela dificuldade em encontrar um grande número de voluntários, na ordem de 18 mil, para testar o imunizante, uma vez que atualmente não há epidemia de dengue no estado de São Paulo”.
Em relação ao prédio para a produção da vacina, o instituto afirma que o mesmo não será revertido para produção da CoronaVac pois a vacina chinesa, por utilizar vírus inativado, necessita de um prédio especial com biossegurança elevada. Para isso, foram solicitados recursos ao ministério, no valor de R$1,9 bilhão.
Em resposta os questionamentos da reportagem, a fundação afirmou, em nota, que sua natureza permitiu celeridade na aquisição dos 1.500 respiradores, “insumos essenciais para o enfrentamento à Covid-19”.
Também ressaltou que os equipamentos garantiram atendimento aos pacientes com quadro grave da doença e que a “aquisição dos respiradores está em conformidade com o Regulamento de Contratações e Compras da Fundação, contemplando os procedimentos para atendimento aos princípios da isonomia, objetividade, publicidade, eficiência, economicidade e competição”. “Recentemente, inclusive, recebeu parecer favorável do TCE concluindo que a aquisição dos respiradores aconteceu dentro da legalidade”, enfatizou.