O projeto “Trabalho, vivências e imigração em uma plantation brasileira: os arquivos da fazenda Ibicaba (1845-1975)” (em tradução livre) recebeu o prêmio Humanidades Digitais, categoria Popularização científica, durante o último Congresso Mundial de História Econômica.

Realizado em Paris entre os dias 25 e 29 de julho, este congresso é a maior e principal plataforma de discussão científica sobre história econômica e estudos econômicos de longo-prazo. O comitê responsável pelo prêmio foi estabelecido pela Associação Francesa de História Econômica, que coordenou duas mesas de debate sobre as Humanidades Digitais.

As nomeações dos vencedores e de todas as categorias podem ser encontradas no site oficial do evento: https://www.wehc2022.org/news/prize-winners

O projeto

O “projeto Ibicaba” é composto por um time de pesquisadores nascidos ou residentes em Rio Claro. O projeto foi liderado por Bruno Gabriel Witzel de Souza e Leonardo Antonio Santin Gardenal. O time contou ainda com a participação do fotógrafo Donalis Delgado e da auxiliar de pesquisa e professora, Carolina Carvalho da Silva.

O projeto Ibicaba foi iniciado em 2019, depois de ter sido eleito para integrar o Modern Endangered Archive Program, uma iniciativa da Biblioteca da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) e do Arcadia Fund para preservar patrimônios históricos e culturais ao redor do mundo e criar um repositório online de documentos digitalizados.

No caso de Ibicaba, o time de pesquisadores criou um arquivo local na fazenda, contando com o amplo suporte e apoio de seus propietários na meta de preservar o patrimônio histórico do interior paulista.

Ao longo de três anos, as etapas do projeto incluíram: indexação de todos os documentos históricos; treinamento de parte do time em conservação material pelo Centro de Memória da UNICAMP (CMU); pesquisa de outras fontes e documentos referentes à fazenda Ibicaba – inclusive junto à Biblioteca Paulo Masuti Levy; criação de metadados harmonizados com todos os demais projetos do MEAP para que os usuários da plataforma possam navegar entre projetos sem dificuldades; e, finalmente, a publicação de todo o material online.

O material digitalizado está disponível na plataforma https://meap.library.ucla.edu/ibicaba-farm, que será atualizada até o final do ano para incluir as mais de 75 mil imagens de alta resolução (em dois formatos) capturadas, harmonizadas e indexadas pelo time de pesquisadores.

Os mais de duzentos livros, livretos e documentos históricos de Ibicaba fornecerão dados únicos no mundo para pesquisas em história econômica e economia do desenvolvimento. Conforme salienta Bruno Witzel de Souza, doutor em economia do desenvolvimento pela Universidade de Goettingen, na Alemanha: “Os documentos de Ibicaba são únicos no mundo. Eles contêm não apenas séries muito completas para quase 150 anos – o que permitirá análises estatísticas de excelência –, mas também informações demográficas e econômicas de uma das principais fazendas históricas do Brasil e das condições de vida, trabalho, bem-estar econômico e produtividade dos trabalhadores rurais. O arquivo de Ibicaba ora digitalizado certamente abrirá fontes de pesquisa científicas inéditas no Brasil e no exterior, dada a riqueza e caráter inédito de seu conteúdo”.

Além de seu potencial para novas pesquisas científicas, outro ponto forte do projeto foi o de auxiliar na preservação do patrimônio histórico e cultural do interior paulista, em alinhamento pleno com as metas dos proprietários e administradores de Ibicaba. Parte do material online motivou a exposição sobre a fazenda Ibicaba na Casa de Cultura de Cascalho, em Cordeirópolis, e atualmente Carolina Carvalho da Silva tem desenvolvido um projeto pedagógico sobre como utilizar o material digitalizado para promover o interesse de crianças e jovens pela história local inserida em seu contexto global.

A Associação Francesa de História Econômica decidiu-se pela projeto para receber o prêmio Humanidades Digitais precisamente por conta do caráter maciço da digitalização realizada em Ibicaba e por suas diversas contribuições – efetivas e potenciais – para a popularização da ciência na educação básica, nas artes e no desenvolvimento local.

Os novos dados da fazenda Ibicaba

Ibicaba foi uma das mais importantes fazendas na história do Brasil, em especial durante a segunda metade do século XIX. Para além de várias inovações técnicas e tecnológicas introduzidas na lavoura cafeeira, a fazenda tornou-se especialmente conhecida por uma inovação institucional, ou seja, a introdução de trabalhadores europeus endividados no cultivo e colheita do café desde 1840.

Ibicaba foi, em grande medida, a iniciadora do processo de imigração para o interior de São Paulo, primeiro com trabalhadores oriundos dos Estados Alemães, Suíça e Portugal e, mais para o fim do
século XIX, principalmente com italianos.

O pioneirismo de Ibicaba foi central para colocar o Brasil nos circuitos da chamada “Era das Migrações em Massa”, ou seja, dos grandes movimentos populacionais no século XIX, que, no Atlântico, levou à migração de pelo menos 50 milhões de pessoas da Europa para as Américas – tendo São Paulo recebido cerca de 1,7 milhão deste contingente.

Conforme salienta Leonardo Gardenal: “Os documentos digitalizados de Ibicaba têm grande valor também para pesquisas genealógicas. Muitas famílias do interior paulista descendem direta ou indiretamente de trabalhadores europeus contratados pela fazenda sob o regime de parceria ou colonato. Embora uma pesquisa por nomes não seja possível na plataforma do MEAP, nós recomendamos fortemente que o público interessado folheie as versões online em busca de seus antepassados, pois os documentos incluem listas de trabalhadores, características demográficas, produção e consumo na fazenda”.

Ao mesmo tempo, Ibicaba manteve o maior número de trabalhadores escravizados da região de Limeira mesmo na década de 1870, o que atesta para a prevalência da escravidão também em nossa região do estado. Bruno Witzel de Souza comentou: “A maior parte dos documentos digitalizados é do período pós-abolição. Nestes, nós identificamos grande número de indivíduos que podem ser classificados como ex-escravizados por conta da cor da pele registrada nos documentos ou pela ausência de sobrenomes. Essas informações nos permitirão estudar, com microdados econômicos, algumas das causas das desigualdades sócioecômicas que permearam a história brasileira e que constituem um dos maiores desafios para o desenvolvimento econômico do país”.

O Modern Endangered Archive Program

O projeto Ibicaba é parte de um programa de digitalização mais amplo chamado Modern Endangered Archive Program (MEAP). Trata-se aqui de uma cooperação entre a Biblioetca da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) e do Arcadia Fund. O objetivo do MEAP é preservar heranças culturais ao redor do mundo, ao mesmo tempo assegurando a preservação nos locais de origem e disponibilizando versões digitais e gratuitas de alta qualidade para consulta pública online.

Todo o material digitalizado fica disponível na plataforma http://meap.library.ucla.edu.

Este site contém ainda ampla documentação sobre digitalização profissional, criação de metadados e preservação arquivística. Todo material é de licença aberta e pode ser utilizado por qualquer pessoa interessada, seja nos dados digitializados, seja em conduzir por si mesma um projeto semelhante. O site é constantemente atualizado, não apenas com os novos materiais digitalizados ao redor do mundo, mas também com as experiências dos mais variados times de pesquisadores – desde o Afeganistão até a Albânia.

A importância de documentos históricos semelhantes

O time de pesquisadores salienta ainda a importância de estender o projeto de Ibicaba para outras fazendas da região. De acordo com Bruno Witzel de Souza: “O interior de São Paulo passou por profundas mudanças estruturais entre meados do século XIX e início do século XX. Trata-se de uma região extremamente importante para compreendermos os caminhos e descaminhos do desenvolvimento brasileiro e sua inserção na economia internacional”.

Os pesquisadores desejam agora ampliar as bases de estudos e encontrar documentos semelhantes para a criação gratuita de arquivos semelhantes em outras fazendas do estado – principalmente no eixo de Rio Claro, Cordeirópolis e Limeira – fomentando ainda o turismo rural e histórico da região.

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