JC Magazine enaltece passado, presente e futuro com raízes muito fortes em Rio Claro
Vlada de Santis – Reportagem e Fotos
Duzentos anos são bem mais que uma vida. Difícil precisar quantas histórias cabem nesse tempo. No Museu ‘Theodor Kölle’ a viagem é garantida e o aprendizado constante – de um passado que se faz presente – precisa ser lembrado. Criado em 1996, ele guarda preciosidades de um povo que há dois séculos pisava pela primeira vez em solo brasileiro. O bicentenário da imigração alemã é motivo de comemoração e tem raízes também em Rio Claro.
“Eu costumo dizer que esse museu é uma pérola. Ele conta realmente a história desses imigrantes que vieram e tiveram uma vida de muito trabalho e principalmente de muita fé. Foram tempos difíceis e eles sempre buscando a palavra de Deus e vivendo dentro da religião. O fato de terem trazido um professor da Alemanha para Rio Claro para ensinar os filhos falantes de língua alemã foi algo irretocável. Existe no município um pedaço da imigração alemã e isso é de um valor inestimável para o passado, o presente e o futuro”, afirma Arlene Cristina Fontanetti Christofoletti, que é professora e coordenadora do museu.
Esse professor ao qual Arlene se refere é exatamente Theodor Kölle, que dá nome ao museu. Desbravador, ele tinha apenas 17 anos quando atendeu ao chamamento de uma publicação feita pelo professor Dolker que procurava “Professor evangélico, de sólidas convicções cristãs, para o Brasil. O mesmo recebe livre viagem de ida (após cinco anos de atividades também a de volta), tem hospedagem inteiramente gratuita na casa pastoral e um salário mensal de 50 marcos”.
Theodor chegou a Rio Claro no dia 2 de dezembro de 1883 e no dia seguinte já estava lecionando em uma classe. O principal foco na época era ensinar as crianças a fazerem contas e lerem a Bíblia. Tudo isso acontecia na Rua 5, local que é o marco zero do Colégio Koelle.
“Olhar para o futuro é necessário, mas se voltar para o passado é fundamental. Toda vez que eu venho a este museu eu aprendo alguma coisa nova. Tudo o que vemos aqui representa um resgate de valores”, pontua Marta Koelle, que é mantenedora do Colégio Koelle.
São documentos, quadros, objetos que vão desde os utilizados em salas de aula da época até utensílios de cozinha. Instrumentos musicais, uniformes. Um acervo riquíssimo: “Eu sinto uma responsabilidade muito grande em perpetuar tudo isso, até mesmo porque eu nasci no ano em que se comemoraram os 100 anos da chegada do meu bisavô – o Theodor. Junto aos meus irmãos, somos a quarta geração. Honraremos esse legado educacional para o futuro através do Colégio”, diz Teodoro Alberto Koelle, que é diretor e mantenedor do Colégio Koelle.
A imigração e a fé
O primeiro templo Luterano do estado de São Paulo foi construído em Rio Claro. Mas para entender esse processo é preciso voltar no tempo. Quem faz essa viagem junto com o leitor é o pastor Eldo Krüger.
“No século XVI existia uma grande insatisfação represada contra a Igreja Católica, o seu domínio, sua doutrina e práticas. Uma das questões que mais incomodavam na época era das indulgências, pelas quais as pessoas pagavam e as compravam para ter o perdão dos pecados cometidos. Tornou-se consolidado na tradição luterana que o destemido Martin Lutero teria pregado [afixado] 95 teses que ele elaborou na porta da Catedral de Wittenberg, gerando grande repercussão e iniciado a Reforma Protestante em 31 de outubro de 1517. Esse documento reunia 95 argumentos com críticas às práticas da Igreja Católica. Por essa ação ele foi excomungado, mas arrebatou com ele muitas outras pessoas que compartilhavam da mesma opinião e foi assim que surgiu a Igreja Luterana – que na base, na essência, tem os mesmos princípios que a Igreja Católica. Algumas coisas permaneceram, como o Batismo e a Eucaristia, mas outras mudaram, como na Igreja Luterana não haver imagens de santos, esse é um exemplo”, afirma o pastor Eldo.
Na entrevista, o pastor relembra que foi no ano de 1824 que os primeiros imigrantes alemães vieram para o Brasil: “Com o fim da escravidão existia uma grande preocupação em torno de quem iria trabalhar no lugar deles. Daí vinha a pergunta dos grandes fazendeiros: a economia vai parar? Nessa época a exportação de café era muito forte, por isso pensou-se em trazer imigrantes de outras nações, e assim vieram os italianos, suíços, austríacos e alemães também. Desse pessoal que veio para cá, muitos eram católicos e outros podemos dizer que eram protestantes, porque o movimento da Reforma não se configurou em uma única igreja. Havia o interesse da Coroa aqui no Brasil e da Europa que passava por um momento crítico social até mesmo com a fome. O primeiro local em que os alemães se estabeleceram foi Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. A segunda leva de imigrantes foi para o Sul e foi em São Leopoldo que o movimento da Igreja Luterana no Brasil ganhou força e fez raízes, já que esse grupo de alemães era em maior número”, conta.
Já no caso do estado de São Paulo é de fundamental importância citar neste processo o senador Vergueiro da Fazenda Ibicaba, em Cordeirópolis: “Na época o Governo fatiou o Estado de São Paulo doando grandes levas de terras em sua maioria para políticos, como o caso do senador Vergueiro. Em São Paulo, os imigrantes chegaram para substituir a mão de obra escrava. Muito espertos deram um jeito de fazer um contrato, cheio de promessas. O senador Vergueiro pagou as passagens desses imigrantes que, ao chegar à fazenda, tinham um lugar para morar. Acontece que esse contrato era de parcerias, ‘meieiros’, pelo qual os imigrantes recebiam por exemplo 20 hectares de terra e ali podiam plantar, cuidar, só que todos os custos e lucros seriam divididos com o senador. A moradia só podia ser ali, comida, roupas, tudo tinha que ser comprado na fazenda. O custo da passagem ia ser descontado aos poucos. O que acontecia é que esses imigrantes sempre estavam devendo, a conta nunca abaixava, apesar de trabalharem muito, e chegou um momento em que a ficha caiu e eles perceberam que tinham sido enganados. Então, ao receber informações do que estava acontecendo na Fazenda Ibicaba, o Governo Alemão mandou um professor para o local, que constatou a exploração. Moral da história: esse povo se revoltou, largou a enxada e saiu de lá vindo para Rio Claro e outras regiões como Limeira, Piracicaba e São Carlos”, explica o pastor Eldo.
Em Rio Claro esse grupo se estabeleceu onde se tornou o bairro Vila Alemã: “Ali fizeram suas casinhas, criavam seus animais… É claro que outros cantos foram povoados também com o passar dos anos, como o Distrito de Ferraz, que também tem raízes muito fortes. Mas continuando, o primeiro ato deles em Rio Claro foi fundar o Cemitério Evangélico no ano de 1865, após reivindicação na Câmara Municipal por um pedaço de terra onde pudessem sepultar seus familiares, pois quem não era católico não podia ser sepultado no cemitério católico, no caso o São João Batista, que na época era católico e hoje é municipal. Depois do cemitério esse pessoal passou a se reunir em casas e um comerciante teve autorização para ser uma espécie de ministro religioso. Em setembro de 1883, em uma assembleia decidiram construir um templo e em 9 de março de 1884 era inaugurado o primeiro Templo Luterano do estado de São Paulo exatamente aqui na cidade de Rio Claro com entrada pela Rua 5, área central. Em 1900 foi construída a torre ao lado do templo. Esta é preservada até hoje. Já o templo foi demolido cerca de 40 anos depois e construído este em que estamos até os dias atuais, que já tem 100 anos, e que fica na Avenida 14 esquina com a Rua 5”, recorda.
Orgulho das raízes
No bairro Cidade Jardim, em Rio Claro, a reportagem da JC Magazine se encontrou com Hannelore Graetz Nogueira de Almeida, 81 anos, ou apenas Hanne, como gosta de ser chamada. Ela nasceu em Rio Claro, filha de Gerhard e Erna Graetz. Depois de passar bons anos morando em São Paulo, voltou para o interior: “Minha ligação com a comunidade alemã é extremamente forte, pois, além de nascer e crescer no meio alemão e luterano onde meu pai foi pastor por 48 anos, também fui professora de alemão em São Paulo. Neste ano do bicentenário impossível não me lembrar das inúmeras histórias que cresci ouvindo de meus pais e avós. Destaco principalmente canções e brincadeiras. É claro que há histórias tristes da guerra também. Guardo tudo como aprendizado”, afirma, reforçando que é imprescindível relembrar o passado para melhorar o presente e fazer um futuro melhor.
Hanne também conta que foi inúmeras vezes à Alemanha: “A vez que mais me marcou foi quando atravessei a fronteira para a Alemanha Oriental e tive que passar por revista pessoal. Procuro manter tradições e costumes alemães principalmente na culinária, na qual meu marido é expert assimilando todo o costume germânico. Nesses 200 anos de imigração eu penso que temos que manter vivos os laços destas duas nações! Tentei fazê-lo na educação de minhas filhas e dos cinco netos, passando para eles toda essa herança cultural”.
Semana do Imigrante Alemão
Foi aprovado em 2ª discussão, no dia 29 de abril de 2024, o projeto de lei de autoria do vereador Vagner Baungartner que cria no município de Rio Claro a ‘Semana do Imigrante Alemão’. Entre os objetivos estão homenagear os imigrantes alemães e/ou seus descendentes, pela contribuição que estas pessoas e famílias deram e dão à cidade de Rio Claro e região; mostrar à população em geral a importância que estes cidadãos tiveram e têm para o desenvolvimento da cidade; difundir os aspectos culturais, históricos, sociais e outros, que estas pessoas trouxeram de seus locais de origem à nossa cultura e sociedade, além de preservar a história e patrimônio cultural de Rio Claro.
A realização vai acontecer todo ano na semana de 25 de julho, data da chegada dos primeiros imigrantes alemães ao Brasil em 1824: “Essa minha ideia foi para reconhecer a contribuição dessas pessoas que impulsionaram o desenvolvimento da cidade. Trouxeram das origens habilidades, técnicas e experiências que a gente não tinha. Alguns dos exemplos são a fabricação de cervejas, inovações na parte mecânica e até mesmo na culinária. Nesse sentido o incremento no progresso de Rio Claro foi imenso. Influenciaram aspectos históricos, sociais e culturais da época. Reconhecer isso nessa comemoração de 200 anos em julho é algo mais do que justo”, declarou Vagner Baungartner – autor do projeto de lei e que também é descendente de alemães por parte de pai.
Jahr der Feier (Ano de Celebração)
A reportagem da JC Magazine também esteve com Johannes Wahner, cônsul de Cultura e Ciência do Consulado Geral da República Federal da Alemanha em São Paulo. Em uma visita à cidade de Rio Claro, ele aproveitou para enaltecer o bicentenário da imigração alemã.
“Os alemães chegaram ao Brasil em várias ondas, como as ondas do mar. Eram muitas as razões para virem, sendo que a principal era a pobreza. Então essa viagem era no sentido de começar uma nova vida, no sentido de esperança. É claro que as superações também foram muitas quando chegaram, mas nos dias atuais, vendo tantas comunidades perpetuadas, a hospitalidade do Brasil prevaleceu”, afirmou.
Mais especificamente sobre o trabalho desenvolvido no Brasil, ele explicou: “Eu sou o adido cultural no Consulado em São Paulo e o trabalho que desenvolvo tem várias vertentes. Uma delas é voltada para a educação, com as escolas alemãs, com tradição alemã, toda a parte da ciência e pesquisa nas universidades, eventos culturais. Então eu procuro falar e coordenar junto aos parceiros o que está sendo realizado”. Quando o assunto é o futuro, Johannes esclarece: “A Alemanha e o Brasil já têm uma relação muito estreita e nós trabalhamos juntos em muitos assuntos. Porém, há todos os desafios globais que temos que enfrentar, como por exemplo toda a parte de sustentabilidade, energias renováveis, inteligência artificial, pandemias e tudo isso necessita de pesquisa e inovação. Tenho certeza de que tudo isso vai acontecer”, disse o adido cultural.