FERNANDO CANZIAN – SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Em praticamente todas as regiões do mundo mais duramente afetadas pelo coronavírus e que retomaram as atividades há queda sustentada no número de mortes e infecções.

A tendência é a mesma na Europa e nos estados brasileiros e norte-americanos mais contaminados. Nos que vinham sendo poupados, os casos estão subindo, elevando a média geral tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos.

Na Europa, onde a epidemia chegou antes, ela está em declínio, apesar de muitos países terem voltado a funcionar quase normalmente.

Nos EUA, cidades mais afetadas e que tiveram ondas de protestos de rua contra o racismo após a morte de George Floyd, em 25 de maio, também não tiveram novos surtos.

Já estados como Califórnia e Texas, alheios à irrupção inicial, são os novos focos.

No Brasil, cidades como São Paulo, Manaus, Rio e Recife, já fortemente afetadas, estão reabrindo até agora sem repiques. Mas a epidemia se alastra no interior, assim como nas regiões Sul e Centro Oeste, até então poupadas.

Epidemiologistas e novos estudos sugerem que a chamada imunidade coletiva necessária para conter a expansão da Covid-19 pode ter sido superestimada ou estar sendo calculada de forma imprecisa.

Isso explicaria a não ocorrência de uma segunda onda de infecções até agora. Mesmo que, nos locais inicialmente mais afetados e reabertos, menos de 20% da população tenha desenvolvido anticorpos para o novo coronavírus.

Há alguns meses, estimava-se que até 70% das pessoas deveriam contrair o vírus antes que ele não encontrasse hospedeiros para se propagar.
O motivo pode ter relação com ao menos dois fatores:

1) Muito mais pessoas pegaram o vírus e desenvolveram anticorpos que diminuem com o tempo, resultando depois em testes negativos; ou elas se curaram mesmo sem a criação de anticorpos;
2) O principal vetor de transmissão do vírus seriam os adultos jovens, que circulam mais pelas cidades, sobretudo em transportes coletivos.
Tome-se o caso de Manaus, considerada por epidemiologistas como um campo de provas para a livre evolução da epidemia devido ao baixíssimo isolamento social que resultou no colapso dos sistemas de saúde e funerário.

Segundo a Epicovid19, maior mapeamento do coronavírus do país conduzindo pela Universidade Federal de Pelotas, o máximo de prevalência de anticorpos na população da capital do Amazonas foi encontrado entre os dias 4 e 7 de junho: 14,6%.

Na rodada seguinte de testes, entre 21 e 24 de junho, a pesquisa encontrou só 8% dos manauaras com anticorpos.

Junho foi o mês em que os sepultamentos e cremações em Manaus se reaproximaram das taxas pré epidemia; e julho vem sendo marcado pela desmobilização de parte do aparato para a Covid-19.

Na cidade de São Paulo, com mais isolamento e menos mortes que Manaus, proporcionalmente, o máximo de prevalência de anticorpos encontrada na população foi de 3,3%, entre 14 e 21 de maio.

Mesmo assim, e apesar da reabertura gradual, a capital registra queda sustentada de novos casos, a ponto de oferecer leitos a cidades onde a epidemia agora avança.

Segundo imunologistas, é provável que o Sars-CoV-2 possa estar sendo combatido em duas frentes: pelos linfócitos (células) B, que produzem anticorpos, na resposta imune denominada humoral; e pelos linfócitos T, que não fazem isso, mas que também combatem o vírus eliminando células infectadas –nesse caso, por resposta citotóxica.

Como a ação dos linfócitos T não produz anticorpos, muitas pessoas teriam defesa contra o vírus sem que a maioria dos testes hoje aplicados (não celulares) detecte isso.

Outro ponto é que os anticorpos produzidos pela ação dos linfócitos B podem diminuir com o tempo, mas sem que se perca a imunidade.

Isso explicaria a redução da prevalência, com o tempo, de anticorpos detectados na população nos testes em Manaus e em outras cidades monitoradas pela Epicovid19 –e sem que haja novos surtos.

Para Julio Croda, infectologista da Fiocruz, a imunização contra o coronavírus pode estar se dando de forma “cruzada”: pela suscetibilidade individual (com linfócitos B e T) e por outros fatores genéticos combinados às políticas de distanciamento social e o uso de máscaras.

“Sem o distanciamento e a máscara, o percentual de infectados e mortos na população teria de ser muito maior para chegarmos à imunidade comunitária”, afirma.

Por discordar do presidente Jair Bolsonaro na questão do isolamento social, Croda deixou a direção do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde no final de março.

Para Natalia Pasternak, doutora em microbiologia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, o ataque ao vírus pelos dois tipos de linfócitos (B e T) e o fato de os anticorpos poderem cair abaixo do detectável, sem prejudicar a imunização, tornam difícil aferir o tamanho da população ainda suscetível ao vírus.

“Ela talvez já não seja tão grande, mas não sabemos. O que não podemos é tratar isso de forma que dê a impressão de um liberou geral [onde o vírus já fez muito estrago].”

Pasternak afirma que a imunidade total só pode ser obtida com um número muito elevado de mortes ou com uma vacina –as principais em elaboração hoje tentam emular os dois caminhos (humoral e citotóxico) para a destruição do novo coronavírus.

Para Daniel Soranz, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, o número elevado de mortes em algumas cidades do Brasil ajudaria a explicar a inexistência de uma segunda onda de infecções, apesar da reabertura desses locais.

“Isso ocorre às custas de muitas mortes. Pois se fossemos desenhar um cenário ruim, não poderíamos criar nada pior do que o que vimos em algumas cidades do Brasil, sobretudo nas comunidades mais pobres, como as daqui do Rio”, afirma Soranz.

Agora, sem nenhuma fila e com cerca de mil pacientes em leitos de UTI no Sistema Único de Saúde, em menos de 20 dias a capital fluminense poderá zerar as internações –a um ritmo de 50 saídas ao dia, por alta hospitalar ou morte.

Esper Kallás, infectologista e professor da USP, suspeita que tenham sido justamente os moradores das comunidades menos ricas, sobretudo os adultos jovens, os maiores responsáveis pela disseminação do coronavírus e da obtenção de uma imunidade comunitária maior nas cidades mais afetadas até agora.

Mesmo que não detectada totalmente nas pesquisas de prevalência imunológica, como as da Universidade Federal de Pelotas, essa imunidade maior impediria agora uma segunda onda de infecções.

“Os adultos jovens, que se locomovem muito mais em transporte público, e que não apresentam sintomas importantes, parecem ter sido os grandes disseminadores do vírus e os responsáveis, neste segundo momento, pela contenção de sua propagação.”

Kallás afirma que, no caso da gripe comum, a imunidade comunitária é atingida com 33% a 44% da população infectada. Em se tratando da Covid-19, a taxa necessária para que isso ainda é incerta, mas ele suspeita que seja menor.

Sergio Cimerman, coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), alerta, porém, para os cuidados que devem ser tomados onde as atividades vem sendo retomadas.

“Estamos longe de qualquer sinal de uma segunda onda, apesar da flexibilização em muitos locais. O que é certo é que o risco aumenta quando existem aglomerações.”

Para a professora e infectologista Raquel Stucchi, da Unicamp, a dinâmica da pandemia do novo coronavírus tem sido um aprendizado –e ele ainda não teria terminado.

“O Brasil foi o único país que iniciou a flexibilização na subida da curva. Quem fez isso próximo do platô, parece ainda estar em situação adequada. Já o interior, que tentou flexibilizar antes, acabou se dando muito mal”, afirma.

Agora, com a epidemia avançando mais no Sul, no Centro Oeste e no interior, esse conjunto de decisões estaduais e municipais, combinado ao enorme grau de desorganização do governo federal, ainda provoca cerca de 40 mil infecções e mais de 1.000 mortes no Brasil todos os dias.

Campanha incentiva o uso de oxímetros e tratamento precoce

Diante da interiorização da epidemia e da prevalência de infecções pela Covid-19 nas áreas mais pobres, o Instituto Estáter e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) lançam nesta segunda (13) o Projeto Alert(ar), uma campanha nacional para estimular o uso de oxímetros no combate precoce ao coronavírus.

A iniciativa tem a parceria de entidades médicas, empresas e lideranças comunitárias, além de prefeituras.

A campanha surge da constatação de que as chances de recuperação são muito maiores quando os doentes são tratados antes de terem os pulmões severamente comprometidos pela Covid-19 –daí a necessidade de medir frequentemente, com oxímetros, a taxa de oxigênio no sangue.

Apesar de não sentirem dificuldade para respirar, muitos infectados apresentam queda perigosa do nível de oxigenação. No jargão médico, a chamada hipóxia silenciosa pode tornar irreversível, e em pouco tempo, o quadro pulmonar.

O presidente do Instituto Estáter, Percio de Souza, considera fundamental ampliar a conscientização e o uso de oxímetros para tentar diminuir a taxa de óbitos no país.

“A interiorização da epidemia torna mais crítica a necessidade do acompanhamento da oxigenação e o tratamento inicial, especialmente para os mais vulneráveis e idosos, que não têm meios de correr sozinhos aos locais onde há leitos de UTI”, diz Souza.

No Brasil, só 6% das cidades têm leitos de UTI; e embora as 27 capitais agrupem menos de um quarto da população, elas detêm quase a metade das vagas.

Já os leitos no interior estão concentrados em cerca de 300 municípios, deixando quase 100 milhões de brasileiros longe das UTIs. Com as distâncias e sem atendimento inicial, há cada vez mais mortes nas pequenas cidades.

O Projeto Alert(ar) prevê conscientizar a população sobre o uso frequente do oxímetro em casos suspeitos e pretende disponibilizar milhares de aparelhos no país a pessoas treinadas que possam monitor conjuntos populacionais.

Basicamente, a infecção pelo coronavírus se dá na sua ligação às enzimas conversoras da angiotensina 2 (ECA2). Abundantes no bulbo carotídeo, esse órgão responsável por alertar o cérebro para que o doente respire com força quando o ar falta entra em pane –e o indivíduo não percebe a queda de oxigênio em seu organismo.

A mucosa nasal também tem muitos receptores das enzimas ECA2 –e a mesma pane explicaria a perda de olfato relatada por muitos infectados.
Embora haja queda de oxigênio, na infecção pelo coronavírus os doentes também não retêm gás carbônico, e não sentem muita falta de ar.

Os dados de algumas cidades monitoradas pelo projeto revelam que cerca de 40% dos doentes que morrem o fazem em casa ou nas primeiras 24 horas de internação –e que outros 40% chegam direto às UTIs, sem que tenham passado por nenhum outro tipo de atendimento.

Já entre os pacientes atendidos em enfermarias (com oxigênio, corticoides e anticoagulantes), apenas 20% acabam precisando de UTI. Na maioria das vezes, não necessitam sequer de ventilação mecânica; só de oxigênio de alto fluxo –e ficam internados por um tempo bem menor.

Segundo Clóvis Arns da Cunha, presidente da SBI, a falta de oxigenação no sangue começa por volta do sétimo dia. Daí a necessidade de monitorar casos suspeitos com os oxímetros e encaminhá-los a unidades de saúde sempre que a taxa de oxigenação cair abaixo de 95%.

“A iniciativa vai nessa direção, de alerta e de conscientização”, afirma.
O Instituto Estáter e a SBI terão o apoio técnico da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), que representa médicos atuando em 47,7 mil equipes de atenção básica, e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).

A Central Única das Favelas (Cufa), com representação em vários estados, dará capilaridade à divulgação, e empresas como Boticário, Embraer, Klabin, Gol, Grupo Ultra e o banco Voiter entrarão com apoio institucional.
Segundo Denize Ornelas, diretora da SBMFC, uma das maiores falhas dos gestores da saúde pública no Brasil nessa epidemia foi não ter disponibilizado oxímetros para as esquipes de atenção básica.

Com a exceção das cidades maiores, poucas equipes têm o aparelho –que pode ser comprado pela internet ao preço médio de R$ 200.

Baseando-se nas curvas de infecções no Brasil e em outros países, Percio de Souza, do Estáter, também não enxerga até agora indícios de uma segunda onda que possa interromper novamente a atividade econômica.

“Mas isso não justifica abandonarmos as políticas públicas para conscientizar a população e buscar meios técnicos para combater essa fase da epidemia. É preciso evitar que medidas tomadas sem embasamento acabem prejudicando ainda mais a sociedade pela via econômica.”

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