ELIANE TRINDADE- (FOLHAPRESS)
Uma estudante de 11 anos de uma escola municipal de Parelheiros, zona sul de São Paulo, deu à luz em maio a uma menina após gravidez de risco resultante de estupro denunciado em fase adiantada da gestação.
O caso colocou à prova o sistema de garantia de direitos e a rede de proteção à infância do município de São Paulo, onde nos últimos três meses 84 meninas de 10 a 14 anos se tornaram mães em três meses de isolamento social, segundo levantamento da Secretaria Municipal da Saúde.
Números que evidenciam a incidência elevada de gravidez na adolescência e alertam para o pacto de silêncio e omissão em torno da violência sexual de crianças e adolescentes no país.
“Infelizmente, menina grávida de 10 anos não é caso excepcional no Brasil, onde o código penal diz que é estupro de vulnerável relação sexual com menor de 14 anos”, afirma Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que atua na prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes.
A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019.
O Sistema de Informações Hospitalares do SUS, do Ministério da Saúde, registra por dia, em média, seis abortos de meninas de 10 a 14 anos.
“A sociedade brasileira precisar acordar para a naturalização desses abusos cotidianos”, diz a ex-secretária de Assistência Social de SP. Segundo Luciana, são cidadãos “respeitáveis” que praticam violência contra criança, não monstros estereotipados.
A exemplo da garota capixaba submetida a um aborto legal em Pernambuco em meio a intenso debate ideológico e religioso, a estudante paulista relatou às autoridades ter engravidado aos 10 anos em um estupro cometido pelo cunhado.
Um padrasto também é apontado como abusador em caso detectado pela escola no início do ano letivo.
Em 17 de fevereiro, o Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (Naapa), da Secretaria Municipal de Educação, foi acionado para dar suporte a uma estudante da sexta série que retornara às aulas em estágio avançado de gestação.
O fato já era caso de polícia desde 28 de janeiro, quando foi registrado um boletim de ocorrência.
Dias antes, a menina havia sido levada pela mãe à UBS (Unidade Básica de Saúde) com suspeita de gravidez. A assistência social indagou sobre a possiblidade de a menina ter sofrido abuso. Fato negado pela responsável.
Os agentes de saúde notificaram o Conselho Tutelar, acionando o sistema de garantia de direitos, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigor há mais de três décadas.
Foi na companhia de um conselheiro tutelar que a menina chegou à delegacia onde contou ter sido levada para uma festa na casa do namorado da irmã mais velha.
“A história tem requintes de crueldade. A criança relata ter sido amarrada pelo cunhado para ser estuprada pelo mesmo. A irmã tinha conhecimento e saiu da casa para facilitar o ato”, diz relatório em que a equipe técnica pede providências.
Na delegacia, a irmã da vítima defendeu o namorado e acusou o padrasto.
Com a pandemia, o monitoramento do caso pelos profissionais da educação passou a ser remoto. Para surpresa de conselheiros tutelares e professores, a denúncia de violência não foi adiante.
Os acusados foram intimados, mas não compareceram para depor. Em 12 de agosto, profissionais da rede solicitaram que o Ministério Público averigue a situação da estudante e da recém-nascida.
“A família organizou chá de bebê. A criança está numa casa onde naturalizaram o fato de ela ter sido estuprada”, afirma Márcia Bonifácio, especialista em saúde mental do Naapa, que acompanha o caso para tentar manter a estudante na escola.
“É um caso de terror, assim como o do Espírito Santo, o que mostra a naturalização de uma gravidez fruto de violência e as dificuldades do sistema em garantir a proteção e os direitos da criança.”
De duas crianças, neste caso: da mãe de 11 anos e da bebê.
Tanto a gravidez a termo da aluna de Parelheiros quanto o aborto legal da garota capixaba mostram em ambos os desfecho as falhas na rede de proteção e na prevenção.
As duas entraram pela porta do abuso e da negligência para a estatística de 26 mil adolescentes grávidas por ano no Brasil.
“O país precisa enfrentar o tema preparando todos os serviços e fortalecendo a capacidade do adolescente de identificar situações de violência e de se prevenir no exercício de sua sexualidade”, afirma Márcio Volpi, coordenador do Programa Cidadania dos Adolescentes do Unicef.
Para ele, o caso da garota do Espírito Santo, emblemático pelo abuso continuado, pela gravidez e pelo aborto legal com exposição da vítima, representa a falência do sistema brasileiro de proteção à infância.
“Precisamos de um sistema que proteja continuamente e não de forma episódica, como agora com esse caso notório quando todo mundo se mobilizou”, diz Volpi.
Com a comoção gerada, os influenciadores digitais Felipe Neto e Whindersson Nunes ofereceram auxílio para a garota que desde quinta-feira (21) aderiu ao Programa de Proteção a Vitimas e Testemunhas.
Qual é o futuro de uma menina violentada é angústia de profissionais na linha de frente do atendimento à infância em serviços especializados Brasil afora, ao lidarem com demanda crescente versus limitação orçamentária e de pessoal.
“De 2016 para cá, houve redução drástica de recursos para ações de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes”, afirma Iolete Ribeiro, presidente do Conselho Nacional de Defesa da Criança.
A psicóloga critica a desarticulação entre o Governo Federal e os demais atores nos estados e municípios. “Não existe prevenção à violência sexual no Brasil. O problema nunca virou política de Estado.”
É o caso da escuta protegida, prevista em lei desde 2018. Para que a criança ou adolescente tenha seu depoimento sobre a violência feito de forma humanizada e uma única vez, o relato deve ser feito a profissionais qualificados em centros integrados de atendimento.
Só cinco estão em funcionamento: em Brasília, Porto Alegre, Belém, Vitória da Conquista (BA) e Rio de Janeiro.
A realidade no país é a peregrinação da vítima por diferentes serviços e a repetição do relato do abuso a cada etapa.
“Acompanhei uma garota estuprada pelo pai desde os 9 anos que contou a mesma história para mim, para os conselheiros, para a delegada, para a equipe do hospital e depois no abrigo”, enumera Márcia Bonifácio, sobre adolescente revitimizada na capital paulista.
O caso veio a público quando a estudante então com 13 anos apareceu com o olho roxo na escola às 7h30 da manhã. O encaminhamento terminou à 1h30 da madrugada seguinte quando foi levada para um abrigo.
Um ano antes, a vítima relatara os abusos a um pastor, depois de entender numa aula sobre sistema reprodutivo que era sexo o que o pai fazia com ela em casa. “Deus vai fazer a obra”, foi o ela diz ter ouvido ao procurar ajuda na igreja.
Ao fazer o mesmo relato aos professores, ela foi encaminhada ao Conselho Tutelar e de lá para a Delegacia da Mulher. Passou sete meses em um abrigo, até que deprimida pelo afastamento da família e dos amigos, ela voltou atrás, disse que inventou a história e retornou para a família.
“Temos que repensar este sistema perverso e falido. Tenho certeza de que ela foi vítima de estupro, mas não suportou a carga e preferiu voltar para o abuso”, lamenta Márcia.
Complexidades que exigem contínuo aperfeiçoamento de políticas públicas, como a necessidade de abrigos só para vítimas de violência sexual, para que novos abusos não ocorrem em instituições mistas.
A fragilidade da rede aparece ainda quando uma menina é abusada por quatro anos em uma cidade de porte médio do Espírito Santo sem que o abuso seja detectado pela escola, pelas unidades de saúde, pelo Conselho Tutelar.
“Tudo isso passa pelo desmonte das políticas sociais e pela leitura equivocada dessa pauta da violência sexual pelo Governo Federal”, diz Karina Figueiredo, secretária-executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Criança e Adolescente.
É sintomático, diz ela, que o Ministério da Saúde não fale mais de educação sexual e reprodutiva, na contramão de tudo que a sociedade civil organizada e especialistas construíram nos últimos 20 anos.
Falar sobre violência sexual e cobrar respostas para casos notórios e anônimos são armas contra a naturalização dos abusos que leva à impunidade e a mais violações.
“Deixar de silenciar é o gatilho que vai fazer a máquina estatal e social girar para construir soluções”, diz Luciana Temer.
Ela chama todos aqueles insones com o sofrimento da garota do Espírito Santo a somarem suas vozes na luta por políticas públicas efetivas em um Brasil que é segundo colocado no ranking mundial de violência sexual contra crianças e adolescentes.