Estadão Conteúdo
Na entrevista que deu ao jornal O Estado de S. Paulo – na estreia de “Divinas Divas”, o belo documentário de Leandra Leal sobre as pioneiras do travestismo no Brasil -, Rogéria reafirmou o que nunca se cansou de dizer. Que era “a travesti da família brasileira”. Era.
A atriz e cantora Rogéria, de 74 anos morreu na noite dessa segunda-feira, 4, vítima de outra infecção urinária. Ela estava internada em um hospital na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio. A informação de sua morte foi confirmada pelo empresário da atriz, Alexandro Haddad.
Ainda na segunda, ela voltou a ser internada. A informação foi dada pela apresentadora Sônia Abrão: “Rogéria volta para a UTI: pessoal, o estado de saúde de nossa querida Rogéria complicou e ela trava agora a sua maior luta pela vida!”. Depois, Sônia voltou às redes sociais para confirmar a morte da cantora.
Quem já viu o filme sabe que Leandra conta por meio de um grupo de artistas travestis e transexuais a própria história. Menina, ela já vivia nos bastidores do Teatro Rival, na Cinelândia carioca. O teatro pertenceu a seu avô, Américo Leal, e ali as “divas” fizeram shows memoráveis, inclusive o que deu origem ao filme, um dos melhores do ano.
“Divinas Divas” começa de forma muito sugestiva. Com as fotos desses homens que se transformaram em mulheres. De fundo, Nelson Gonçalves canta “Escultura”. É perfeito para definir do que trata o filme.
Rogéria nasceu Astolfo Barroso Pinto no dia 23 de maio de 1943 em Cantagalo, Rio. Como dizia, metaforicamente, nunca quis se desfazer do Pinto. “Não sou louca de achar que sou mulher”, mas como artista ela foi – e (quase) perfeita, se não fosse o detalhe. Dizia que já era gay na barriga da mãe e nunca sofreu discriminação. “Minha mãe sempre aceitou como sou e, quando tentavam me discriminar, eu baixava o Astolfo.” Garoto, já brincava de Cleópatra, liderando as legiões romanas formadas pelos meninos, da família e do bairro. “Não transava com nenhum pra me respeitarem. Se alguém quisesse faltar ao respeito, eu baixava o pau. Batia mesmo.”
Começou a carreira artística como maquiadora da TV Rio e, segundo dizia, a convivência com tantos atores, teve algo semelhante a um estádio no Actors Studio, o famoso centro formador de atores de Nova York. Estreou como artista de palco no dia 29 de maio de 1964, no espetáculo “Les Girls”, na Galeria Alaska, notório reduto de público homossexual. Dirigido por João Roberto Kelly, foi o primeiro espetáculo nacional de transexuais
Muito jovem, foi para Paris. “Aquele clima seco transformou meu cabelo, que já usava grande. Virou uma juba. Quando veio a cabeleira, liberei a mulher e virei Rogéria.” Na Espanha, não queriam que participasse de shows porque não era operada. Na França, foi cantar com orquestra. “Cheguei e ninguém me deu bola Achavam que eu devia ser uma brasileira de m… Pensei comigo: ‘Vou ter de me impor’. Soltei a voz cantando em francês. Me aplaudiram no final.”
No Brasil, participou de shows, filmes, novelas. Foi vedete de Carlos Machado e, em 1979, venceu o Mambembe (importante prêmio criado pelo Ministério da Cultura e que distinguia as melhores produções do eixo Rio-São Paulo), por “O Desembestado”, peça com Grande Otelo. Enfrentou a ditadura fazendo espetáculos transgressores numa época de muita censura. Sobreviveu a tudo e a todos. “Dores, só de amores, que foram muitos.”
O público classe A sempre a respeitou, como artista. Fez o crossover. “Fiquei uns dias em São Paulo para lançar o filme (de Leandra). Botava tênis e ia ao supermercado. Todo mundo queria fazer selfie comigo. O povo me ama. Sou vitoriosa.”
Nunca foi de fazer passeata por direitos de gays, mas sabia que sem seu pioneirismo, e das demais divas, o movimento LGBT talvez não tivesse avançado tanto no País.
Nunca se esqueceu do que lhe disse a mãe. “Se você vai ser mulher, que seja de classe. Prostituta, não.” Respondeu a uma pergunta indiscreta do Estado – já que nunca operou, xixi sentada ou de pé? “Depende da disposição. Mas se faço de pé, levanto a tampa. Homem é muito porco, mija tudo. E eu seco. Essa história de última gota não é comigo não.”
No teatro, além de vedete de Carlos Machado, participou, em 1976, da peça “Alta Rotatividade”, na qual contracenava com comediantes como Agildo Ribeiro. Em 2007, Rogéria voltou ao palco como um dos destaques de “7, O Musical”, dirigido por Charles Möeller e Claudio Botelho. Ela dividiu a cena com Zezé Motta, Eliana Pittman, Alessandra Maestrini, Ida Gomes, entre outros.
Participou ainda, em 2004, ao lado da atriz Camille Ka, da peça “Divinas Divas”, no Teatro Rival, do Rio. A produção inspirou o documentário dirigido por Leandra Leal. Todas suas histórias foram narradas no livro “Rogéria – Uma Mulher e Mais Um Pouco”, biografia lançada em outubro de 2016, pela editora Sextante. Foi escrita por Marcio Paschoal, amigo e vizinho de Rogéria no bairro carioca do Leme. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.